domingo, 21 de dezembro de 2014

Uma arqueologia da sociedade americana

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 21/12/14



Quem não viu perdeu um grande filme cotado para o Oscar de direção deste ano, embora abominado por alguns. Estou falando de “Boyhood, da infância à adolescência”, de Richard Linklater que rastreia a vida de um menino dos 6 aos 18 anos, Manson, e sua irmã mais velha, Samantha, e suas relações com a família. Trata-se de uma família comum de classe média, sem nenhum episódio relevante, filmada durante doze anos. Daí a genialidade de seu diretor que prende a atenção do espectador por quase três horas.

Cinematograficamente Linklater introduz uma linguagem nova, sem narrativas nem legendas cronológicas. Não pretende fazer história (documentário), nem estória (ficção) ou tese. Oferece ao espectador fragmentos do cotidiano de uma família referenciados pelos cantores de moda e romances best-sellers da época, como um arqueólogo que inventaria ossos e cacos de cerâmica por estratos e deixa aos antropólogos reconstruir hipoteticamente uma civilização. Ele faz o mesmo no filme, deixando ao espectador interpretar flashes da vida de um garoto introspectivo, provavelmente em função das mudanças de domicilio, escola e padrasto violentos em decorrência dos casamentos frustrados da mãe.

O que mais chama a atenção nesse filme é o peso da educação na sociedade norte americana, não apenas na escola pública, integral e de qualidade, mas em casa com a cobrança de horários, realização dos home works, compartilhamento das tarefas domesticas, acampamentos em parques naturais, participação em campanhas políticas e a saída de casa ainda na adolescência para estudar longe da família, começando a trabalhar e assumindo responsabilidades muito cedo. Quando Manson se refugia na câmara-escura para fazer o hobby que gostava, o instrutor lhe adverte que não basta talento é preciso disciplina para vencer e que ele deve voltar a sala da aula.

Apesar do seu bom desempenho nos estudos ele não ganha um carro novo da mãe, nem o vintage car do pai, senão compra uma pick-up velha para rodar com a namorada nas estradas desoladas do Texas. Uma atitude oposta a dos nossos pais de classe média, que criam mauricinhos e patricinhas mimados e pouco participativos. Numa coisa somos iguais. É a mãe, especialmente das nossas classes C e D, a referência e o arrimo da família. O filme mostra que a segurança econômica numa sociedade capitalista só se alcança com a educação. No caso da mãe, ela precisa terminar a faculdade para ser professora e criar dignamente os filhos. Um “chicano” que fazia biscates em sua casa reencontra a patroa, anos depois, em um restaurante onde é gerente e agradece a ela por lhe ter aconselhado a estudar.

O filme mostra também o lado oposto da moeda, o culto às armas, a violência e o alcoolismo. A competitividade naquela sociedade, que não admite meio termo entre vencedores (winners) e perdedores (losers), leva também alguns jovens a fuzilarem colegas nas escolas onde estudam ou à frustração da mãe que declara na conclusão do curso secundário do filho: “Eu nasci, casei, tive filhos, consegui o emprego dos sonhos, casei de novo, divorciei, vi Samantha ir para a faculdade, vi você ir para a faculdade e depois? Só meu funeral”.


Veja o trailer do filme:


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A REFORMA POLÍTICA QUE PRECISAMOS

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 23/11/14


As manifestações de junho de 2013, a crise econômica, os escândalos de corrupção e disputas na base política do governo evidenciam uma profunda crise de governabilidade. A reforma política foi um dos temas da campanha sucessória. Mas as bandeiras empunhadas pela situação de financiamento público das campanhas eleitorais ou da oposição de ampliação dos mandatos e revogação da reeleição, ou mesmo bandeiras esquecidas como o voto distrital, não vão resolver nada se não for mudado o regime político. 

Desde a redemocratização todas as administrações estiveram envolvidas em suspeitas de suborno, lavagem de dinheiro e superfaturamento de obras. Sarney com a Ferrovia Norte/Sul, Collor de Mello com supostos restos de campanha, FHC com a aprovação da reeleição e os governos do PT com o mensalão e os escândalos da Petrobrás e das empreiteiras. Governos estaduais, como os de Minas, DF, Rio de Janeiro e São Paulo, estiveram também envolvidos em escândalos. 

Por que isto ocorre? Porque temos uma constituição parlamentarista onde tudo deve passar pelo congresso, mas não temos um primeiro-ministro eleito por ele com quem dividiria a responsabilidade do governo, senão um executivo eleito por outra via, que para governar tem que aliciar até mesmo sua base política na base da Lei de Gerson. A corrupção está ligada à ingovernabilidade do regime vigente. 

O parlamentarismo de Ulisses e Tancredo, mas vetado por Sarney, que restaurou o presidencialismo monocrático esquecendo de alterar a constituição, poderia ser a solução para esta mazela, mas é pouco viável no quadro político atual. De qualquer modo, parlamentarismo e presidencialismo que têm suas origens na Inglaterra e EE. UU. são regimes de governo do século XVIII que já não atendem às exigência das relações de poder contemporâneas.

O regime que melhor se adaptaria ao Brasil, ao meu ver, seria o adotado pela constituição da 5ª República Francesa, em 1958, e por Portugal em 1976 e denominado pelo francês Maurice Duverger, em 1978, como semipresidencialismo. Este é o regime adotado pela França, Portugal, Rússia, Ucrânia, Tunísia, Roménia, Taiwan e muitos outros países. Ele é um regime dualista constituído por um presidente eleito pelo voto direto do povo com atribuições da constituição e um primeiro- ministro eleito pelo congresso que lhe respalda as implementações. 

Quando esta interdependência se rompe por um voto de censura do parlamento, o primeiro ministro e seu gabinete caem e é formado um novo governo. Se a crise é mais profunda o presidente convoca uma nova eleição. Na França e na Roménia o presidente é responsável pela política externa e o primeiro-ministro pela interna. Assim no semipresidencialismo o regime se apoia em um tripé formado: pelo congresso que é o legislador, pelo primeiro-ministro e seu gabinete, que é o executor e pelo presidente que com o respaldo popular exerce a função política e moderadora.

Para realização desta mudança de regime é necessário a convocação de uma constituinte e seus membros estariam impedidos de se candidatarem ao mandato imediato. Assim poderíamos fazer as reformas que o país necessita, acabar com a mãe de toda a corrupção e o fantasma dos golpes de estado.

domingo, 9 de novembro de 2014

MORTES NO TRANSITO

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 09/11/14

Um dos efeitos mais trágicos do rodoviarísmo ainda vigente no país são as mortes em carros, motos e atropelos em nossas cidades e estradas. As projeções para este ano são de 48.349 mortes. Em números absolutos ocupamos o quarto lugar nas estatísticas mundiais, só abaixo de países muito mais populosos, como a China e a Índia ou sem infraestrutura, como a Nigéria. Esse número vergonhoso resulta da ausência completa de políticas de transporte público e desmonte dos sistemas ferroviário e da cabotagem no último meio século.

Assustadora são as taxas de acidentes e mortes em motos, cuja frota cresce mais que a de carros devido aos engarrafamentos e facilidade de aquisição. Não temos estatísticas confiáveis de mutilados no transito, mas este é um dos aspectos mais graves dessa política que privilegia a produção, financiamento, combustível e infraestrutura para o veículo individual e nada para os modais públicos e a bicicleta.

Estive em Moçambique em missão da UNESCO, pouco depois da independência. Por toda parte havia mutilados, e continuavam a chegar novos, pois ninguém cadastrou onde pôs as minas-de-pé. Pude então entender a lógica perversa dessa arma que não é feita para matar senão para aleijar, pois um mutilado desmobiliza três soldados: o ferido e dois colegas que vão carregar a maca e lhe dar socorro. Na guerra do transito, um mutilado significa não apenas uma baixa senão duas na cadeia produtiva nacional. Pergunto aos economistas quanto custa à nação este exército de mutilados e em especial quanto ele onera o sistema previdenciário?

Recentemente foi sancionada a Lei 12.971 aumentando em até dez vezes as multas por infrações no transito. Mas a eficiência de uma lei não é função do valor das multas, senão de sua fiscalização. O estado deve compreender que muitas dessas infrações e mortes se devem aos buracos de nossas vias e à falta de sinalização, guard rails, acostamentos, fiscalização e educação para o transito. As nossas escolas de motoristas são moldadas em função de um exame de habilitação obsoleto, que pergunta sobre sinais, primeiros socorros e faz a temível prova da baliza. Este último item não traz segurança a motoristas nem pedestres, senão ao carro do vizinho. Os novos carros fazem isto automaticamente.

A exigência recente dessas escolas instalarem simuladores foi regulamentada de forma equivocada, como uma previa ao início do aprendizado e não como o termino, simulando a direção em auto-estradas, o controle do carro em derrapagem, a direção sob chuva e à noite. Os recém habilitados ignoram a eficiente sinalização dos caminhoneiros e que eles não podem desacelerar em descidas ou subidas para dar passagem a um automóvel em contramão. Que com o motor desligado o freio de um carro não funciona e nesse caso é preciso usar o freio motor e de estacionamento adequadamente. Sem dessa instrução muitos se lançam nas estradas fazendo barbaridades, morrendo e matando. “País desenvolvido não é aquele que os pobres andam de carro, é aquele que os ricos andam de transporte público”, como diz Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, que com Medelín deviam ser exemplos da boa mobilidade e segurança urbana para nós. 

domingo, 26 de outubro de 2014

SERGIO RODRIGUES E O MODO BRASILEIRO DE PREGUIÇAR

Paulo Ormindo de Azevedo


O ano de 2014 tem sido de grandes perdas para a arquitetura brasileira. Além de Lelé e do professor Miguel Pereira perdemos em 1º de setembro, aos 87 anos, o arquiteto e designer Sergio Rodrigues. Poucos leitores ouviram falar seu nome, mas muitos não resistiram a experimentar sua envolvente “Poltrona Mole”, criada em 1957 a pedido de um fotógrafo amigo, mas que ficou enfusada nas vitrines durante meses por seu preço elevado. 

Sérgio Rodrigues na Poltrona Mole. Foto: Internet


Carioca formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1952, Sérgio é um dos autores do Centro Cívico de Curitiba, porém se dedicou especialmente à criação de moveis. Dois anos depois de formado foi contratado pela rede chique de lojas Forma como designer de moveis, mas descobre logo que aquela não era a sua praia. Em 1955 abre em Ipanema a loja/estúdio Oca, de arquitetura de interiores e móveis, que logo se transformaria em point de intelectuais. O nome de seu estúdio/fabrica já revela a sua preocupação com as nossas raízes. 


Poltrona Mole. Foto: Internet
Sua projeção internacional advém em 1961 quando ele ganha o 1º prémio no Concurso Internacional do Móvel, em Cantú, Itália com a pouco conhecida “Poltrona Mole”. Esta poltrona é uma robusta estrutura de madeira, em oposição aos móveis de pés de palito da época, que suporta uma rede de couro sobre a qual repousa um enorme almofadado que convida o passante a se esparramar preguiçosamente e tirar uma soneca. Junto com Joaquim Tenreiro e Zanine Caldas ele projeta o design brasileiro no mundo. A Poltrona Mole faz parte hoje do acervo permanente do MoMa de Nova York.


Fonte: Cals, Soraia. Sergio Rodrigues. Rio de Janeiro: S.Cals, 2000.
Em seus treze anos de existência a Oca produziu cerca de mil diferentes modelos de móveis de desenho avançado mas usando os materiais da tradição indígena e luso-brasileira: madeira, couro e palha, ao invés do inox do Bauhaus ou a fibra de vidro, contraplacados moldados e aramados dos americanos Saarinem, Eames e Bertoia ou as espartanas cadeiras de Lina Bardi. Suas cadeiras e poltronas não são rígidas e frias como as acima referidas, senão flexíveis e sensuais ao tacto pois se inspiram nas redes, camas de varas, trançados e tamboretes de nossos índios. São os descansos de Macunaíma. 

Com problemas financeiros ele fecha a Oca em 1968 e abre um atelier onde concebe moveis para monumentos como o Palazzo Doria Pamphili, embaixada do Brasil em Roma, palácios da Alvorada e dos Arcos (Itamaraty) e Teatro Nacional de Brasília além de grandes empresas nacionais e internacionais. Entre 1973 e sua morte ele atua através da empresa Sergio Rodrigues Arquitetura realizando, além da de móveis, casas pré-fabricadas com estrutura de madeira e cobertura de fibra de vidro.
Poltrona Kilin, de 1973
Poltrona Killin, premiada pelo IAB em 1975. Fonte: Internet
Seus móveis foram expostos em Buenos Aires, Madrid, Bruxelas, Roma, Estocolmo e Nova York. Ele recebeu ainda o Prémio do Instituto de Arquitetos do Brasil pela poltrona Killin em 1975, Prémio Lápiz de Plata Buenos Aires 1987, e Premio do Museu da Casa Brasileira de São Paulo pela poltrona Diz, tão macia quanto a Mole embora toda de madeira. Fica minha lembrança desse guru bonachão no casarão de Botafogo, de boina, rabo de cavalo e generoso bigode que filtrava sua fala grave e mansa enquanto debaixo de sua calva juvenil Macunaíma não parava de traquinar. 

domingo, 12 de outubro de 2014

LELÉ: AQUITETURA SOCIAL COM ALTA TECNOLOGIA

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 12/10/14

Apesar de ter marcado Salvador com inovadoras passarelas e equipamentos sociais, o Arq. João da Gama Filgueiras Lima, o Lélé, falecido em maio, foi pouco reconhecido em vida e após a morte por nossas autoridades. Em parte isto se deve a sua extrema discrição e aversão às promoções vazias das revistas de decoração e do top of mind. Lelé estava em outro plano, o da dignificação dos equipamentos sociais licitados pelo menor preço, porque destinados ao povão.

O carioca Lelé desenvolveria seu trabalho de alta tecnologia e relevância social em silencio em Brasília e em Salvador. Na nova capital, levado pelos mestres Nauro Esteves e Oscar Niemeyer, troca a musica e a boemia pela desolação do cerrado. Descoberto por Darcy Ribeiro no canteiro da UNB é enviado à Tchecoslováquia e à Polônia para observar a industrialização da construção fazendo suas primeiras experiências no campus da UNB.

Selecionado professor da UNB em 1962, renuncia com mais 200 colegas e servidores em 1965 em protesto pela transformação da universidade em caserna pelo golpe de 64, mas ganha de Niemeyer sua primeira oportunidade ao projetar o Hospital Regional de Taguatinga. Essa experiência e o nascimento de uma filha com problemas neurológicos orientaram seu trabalho para a questão da saúde e da educação publica. Em parceria com o Dr. Aloysio Campos da Paz inicia na década de 80 a rede hospitalar Sarah que se transformaria em uma referência mundial não só de tratamento do aparelho locomotor como de arquitetura hospitalar.

Sem trabalho, aceita em 1973 o desafio do Secretario Mario Kertész, no governo ACM, para concluir em tempo recorde o Centro Administrativo da Bahia. Deflagra assim a pré-fabricação na Bahia ao lado de obras excepcionais em tecnologia corrente como o portal do CAB e igreja da Ascensão. Constrói ainda a Estação da Lapa, o Complexo de Delegacias e a igreja dos Alagados. No segundo mandato do Prefeito Mario Kertesz, 1985-1989, cria a FAEC, onde aperfeiçoa a tecnologia da argamassa armada ensaiada na comunidade de Abadiana, Goiás, aplicada a escolas, abrigos, escadas-drenantes, lixódutos e passarelas cobertas, que seriam reproduzidas em todo o país. Monta em 15 dias o Palácio Tomé de Souza na Pç. Municipal e recupera com Lina Bardi casas no Pelourinho.

Com a redemocratização, Lelé é levado por Darcy Ribeiro para o Rio para fazer com Niemeyer os CIEPS, no governo de Brizola, e escolas-parques do sistema CIACs em todo o país, na administração de Collor de Mello. Cria em 1991, anexo ao Sarah Salvador, o Centro Tecnológico da Rede Sarah, CTRS, que permitiria pré-fabricar oito hospitais da rede Sarah e seis sedes estaduais do TCU com inovador sistema construtivo e de ventilação natural com baixíssimo consumo energético. Utiliza pioneiramente a mecatrônica para regular automaticamente brise-soleils e claraboias de exaustão, como no Sarah do Rio. Em todas estas obras painéis do artista Athos Bulcão.

Obrigado pelo TCU a fechar o CTRS, Lelé deixa projetos importantes como o Tribunal Regional de Trabalho de Salvador, a Casa da Mulher e habitações populares em encostas engasgados na burocracia estatal e no atraso das nossas construtoras.

domingo, 28 de setembro de 2014

O FIM DA PROPAGANDA VAZIA

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 28/09/14

Não me recordo de um campanha eleitoral mais perturbada e aguerrida como esta, continuação aparente de um movimento político-social iniciado em junho de 2013 e sem prazo para terminar. Será este movimento resultado da expansão da classe C e rebaixamento da classe média. Se for, PSDB e PT responsáveis por esse processo são vítimas de fogo amigo. Esta insatisfação se deve à falência do sistema representativo. Para o público os quase 40 partidos são todos farinha do mesmo saco. Nenhum candidato a presidente, governador, deputado ou senador apresenta proposta nova. Ninguém se lembra em quem votou para deputado ou senador, nem se sentiu representado. 

Com processos eleitorais independentes, presidente e governadores também não têm a fidelidade de seus legislativos. Só governam se cooptarem os partidos da base. E esta cooptação obedece à Lei de Gerson criando-se um círculo vicioso. Isto fica evidente quando constatamos que o custo das campanhas para serem bem sucedidas ultrapassam em muito os ganhos salariais auferidos durante o mandato. Os que não seguem esta prática dificilmente são eleitos. Representar o “povo” virou um negócio de família, que no caso da Bahia chega a três gerações. 

A atual campanha exemplifica claramente estes fatos. Os programas partidários ficam apenas registrados no TER. Nas campanhas majoritárias apenas promessas genéricas: melhorar a educação, a saúde e a segurança com mais investimento, mas sem dizer como. Nas companhas legislativas nem isso, apenas uma foto colorida e um número. Para os marqueteiros é preciso não se comprometer com nada, para não ser contestado. Assim, a propaganda dos senadores e deputados é toda igual e mais parece uma campanha da Kolynos. Cerca de 99% dos candidatos exibem reluzentes dentaduras e um numeral, que não chegamos a gravar. Preferia o velho e barato santinho, que guardávamos no bolso para a hora da votação.

Em Salvador esta campanha imagética chega a saturação nas avenidas de vale e na Paralela. A indústria gráfica agradece a campanha multimilionária. Até quinze fotos do mesmo candidato em fila rindo, ninguém sabe de que ou de quem. Em São Paulo cartazes estão proibidas, no Rio, Brasília e demais capitais eles são raros. Dirão que o tempo na televisão é mínimo e nos cartazes, devido à velocidade dos veículos, ninguém lê. Marqueteiros mais criativos poderiam associar o retrato do candidato com sua plataforma: um médico com um estetoscópio, um defensor da Petrobrás com o capacete da companhia, um indignado com uma vassoura. Apenas um boxer aparece com suas luvas e dois candidatos com cachorrinhos. 

Darcy Ribeiro dizia que não existia um cabrito abandonado neste pais, mas as sinaleiras de nossas cidades estavam cheias de crianças abandonadas. Ninguém se propõe ser o protetor das crianças ou do hospital da Irmã Dulce. Na Itália quando fiz um doutorado a justiça eleitoral colocava painéis nos principais pontos das cidade onde os candidatos colavam pequenos cartazes (A4) com sua foto e suas plataformas eleitorais. A única propaganda inovadora desta campanha é um retrato em branco e preto de um candidato inspirado nos versos de Chico: “Já conheço os passos dessa estrada e...”

CORRUPÇÃO E GOVERNABILIDADE

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA:A Tarde, 14/09/14

Há cerca de dois anos perguntei: “Podemos festejar mensalão nunca mais?”, em artigo publicado neste jornal em 16/8/12. Não deu outra, mais um escândalo acaba de explodir ligando grandes empresas públicas e privadas a partidos, políticos e governantes. Esse tema não é novo. Desde a redemocratização, para não falar nas ditaduras, praticamente todas as administrações e partidos estiveram envolvidas em suspeitas de superfaturamentos, lavagem de dinheiro e subornos. Sarney, com o escândalo da Ferrovia Norte/Sul, Collor de Mello com repatriação de dinheiro da campanha do Uruguai, FHC com suposta compra de votos para aprovar a renovação dos mandatos e os governos do PT com o mensalão e o atual escândalo da Petrobrás. Apenas Itamar, o breve, não foi envolvido. Também governos estaduais estiveram envolvidos em escândalos, como os de Minas, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. 

Em todos os casos a corrupção esteve ligada a compra de votos. Em outras palavras, a corrupção está intimamente ligada à governabilidade. Isso ocorre porque na organização política brasileira não existe fidelidade entre o legislativo e o executivo, como sucede nos regimes parlamentaristas das democracias ocidentais, em que o primeiro-ministro é eleito pelo parlamento. Quando este vínculo se rompe o gabinete cai. Por outro lado, no presidencialismo, o presidente tem mais autonomia que um primeiro-ministro e não depende de medidas provisórias. Nos Estados Unidos o presidente é praticamente um primeiro-ministro, pois é eleito pelos delegados do partido que reunir maior apoio popular. Como o regime é bipartidário, ou se é situação e apoia o governo ou se perde a próxima eleição. 

No Brasil temos um regime bastardo, que não é nem parlamentarista, nem presidencialista, porque em 1988 o presidente Sarney indeferiu a figura do primeiro-ministro da constituição inspirada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves e manteve o presidencialismo clientelista. Assim, tudo tem que passar pelo Congresso e o presidente para governar deve disputar o apoio da maioria dos 500 deputados federais e 80 senadores; Aí se estabelece uma barganha promiscua entre o executivo e o legislativo. Nessa barganha entram cargos, liberação de recursos para obras e valores menos ortodoxos que vêm do tesouro e das estatais. É neste ponto que entram as empreiteiras superfaturando as obras e lavando dinheiro para fidelizar a base política do governo. O mesmo se repete nos governos estaduais e municipais. 

O regime político bastardo vigente é estruturalmente corrupto e não será sarado apenas com o financiamento público das campanhas eleitorais e pequenos ajustes, como apregoam os políticos. Ou encaramos seriamente o parlamentarismo, como na maioria das democracias ocidentais, ou continuaremos a ser uma pseudo-democracia latino-americana desigual e corrupta. Precisamos de um parlamentarismo com partidos fortes, que necessariamente se formarão, e não o arremedo adotado no II Reinado e em 1961 para driblar Jango ou manipulado como no plebiscito de 1993 em que se confundia parlamentarismo com monarquismo. Este é o dilema da nossa sociedade nesta eleição, que os nossos políticos fingem ignorar para não perderem o cheque em branco que têm em mão.

domingo, 31 de agosto de 2014

DOIS ACERTOS E UM EQUÍVOCO URBANO

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 31/8/14

Dois fatos ocorridos nas ultimas semanas não passaram desapercebidos a este colunista, que se propõe discutir criticamente as ações sobre a cidade. O primeiro é a requalificação do Farol da Barra. O prefeito tem enfatizado em discursos a “peatonização” da cidade e a restauração da autoestima soteropolitana. São ações positivas no confronto com o “rodoviarismo” dos anos 50 ainda vigente no Estado, como no desmesurado minhocão do Imbuí, vedado a bicicletas e pedestres. No Rio e em São Paulo eles estão sendo desativados.

O problema é a implementação. Cegos sabem andar em passeios sem guias. O piso táctil em todo o mundo é colocado apenas em desníveis, barreiras e cruzamentos. Universalizado deixa de ser uma linguagem e passa a ser ruído. Melhor seria eliminar as rampas de carros, colocar sinaleiras sonoras, restaurar os passeios e fazer bases nos orelhões. A bike Itau é também simpática, mas até agora tem sido tratada como lazer e não como modal, Um terço da população de Salvador não pode pagar transporte. As avenidas de vale são planas e a Conder tem uma ciclovia engavetada há anos. Redes de ciclovias são faixas exclusivas integradas a bicicletários nos terminais de transporte. 

Não critico a prioridade no Farol. Aquela é a ponta do padrão e boca da baia, que um tecnocrata queria amordaçar. O Farol já foi um ícone popular: do footing, da sorveteria do Oceania, do clube Palmeiras e do Chame-Chame da minha juventude, e continua sendo ponto obrigatório das linhas populares de ônibus. Aguardo a promessa do prefeito de fazer o mesmo na Ribeira, Paripe e Tubarão. 

O equivoco está na redução em 60 % a outorga onerosa das novas torres (A Tarde, 23/8/14) e como compensação o aumento do IPTU. Equivoco porque a verticalização exige a ampliação da infraestrutura urbana que recai sobre a prefeitura, mas gera também mais-valia que é apropriada só pelas imobiliárias. Os maiores bancos e empreiteira do país nasceram da acumulação da mais-valia urbana, enquanto a infraestrutura das nossas cidades se degradava. Onde existe uma casa surge uma torre de 40 andares e sete vagas por apartamento que irão travar a via. Estas vagas e enormes varandas gourmet são isentas de tudo.

A verticalização provoca três impactos: na identidade urbana, na congestão do trafego e no meio ambiente. Imagine ir a Paris ou Roma e não poder ver a torre Eiffel e o Coliseu, como nós deixamos de ver o mar e as torres das igrejas. Isto se traduz em perda de turismo e dinheiro. As nossas ruas não alargam um centímetro, enquanto a densidade populacional e a frota de carros cresce exponencialmente roubando horas de trabalho e descanso. 

A barreira de edifícios, cujas garagens ocupam todo o lote, além do sombreamento, impermeabilizam o solo, geram inundações e provocam ilhas de calor. Estudos da UFSE em Aracaju mostram que na terceira quadra da orla, que é ocupada só por edifícios de cinco andares á temperatura chega a 5 º C mais que na orla. A altura máxima dos edifícios deve ser determinada pela capacidade da via e o que passar do coeficiente de aproveitamento um deve ser cobrado como outorga onerosa. A medida só irá favorecer os especuladores de transcons. A crise do setor imobiliário é de superoferta e mais estimulo só piora a situação.

domingo, 17 de agosto de 2014

NO CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO!

Paulo Ormindo de Azevedo
A Tarde: SSA, 17/08/14.

Faço parte de um grupo que se encontra semanalmente na Academia do Fragoso. Enquanto nos divertimos com a prosa e exercícios leves, Florisvaldo Mattos exibe na esteira uma musculatura poética invejável. No final de uma dessas sessões, lembrando meu convite para ir ao Ceará (A Tarde 25/05/14) ele me sugeriu o mote acima como que dizendo que para cantar o Ceará era melhor a musica de Gonzagão, sertanejo, que a de Caymmi, praieiro. 

Recordei a primeira estrofe da música: “Tenho visto tanta coisa/ Nesse mundo de meu Deus/ Coisas que prum cearense/ Não existe explicação./ Qualquer pinguinho de chuva/ Fazer uma inundação./ Não se pode comprar nada/ Sem topar com tubarão”. Já havia escrito sobre os alagamentos das avenidas de vale com um pingo de chuva e provocar tubarões é perigoso. 

Pensei nas ligações da Bahia com o Ceará, seu povoamento com os currais de Garcia D’Ávila através do Piauí: “O meu boi morreu/ O que será de mim/ Manda buscar outro, oh maninha/ Lá no Piauí”. Ao invés de boi veio um interventor do Ceará. O beliscar de um beiju de paçoca precipitou uma cascata de memórias políticas dos dois estados. 

No Ceará as oligarquias políticas não duram mais que vinte anos e isto explica o dinamismo do estado. Foi assim com os Accioli, os Távora, o Cel. Cesar Cals, os Bezerra, os Jerissati e os Gomes. Na Bahia os quadros políticos não se renovam. Inimigos se reconciliam, mas não largam o osso. Tanto os descendentes de Juracy quanto de seu desafiante, Cel. Horacio de Matos, de morte misteriosa, convivem numa boa na política baiana há 83 anos. Também um descendente de Nestor Duarte, secretário de estado de Otávio Mangabeira (1947-51) opositor da ditadura, participa do mesmo esquema. Outro aliado de Mangabeira, Lomanto Junior, conseguiu governar a Bahia no bravio período de 1963 a 1967 virando a casaca. Seus descendentes continuam na arena. 

Algumas linhagens têm origem ainda mais remota, como a fundada pelo Governador Luis Viana (1896-1900). Seu filho homônimo, um intelectual de valor, voltou ao governo 67 anos depois e elegeu o afilhado Roberto Santos e o filho vice-governador e senador. Outros não esperam os filhos crescerem, repetem seus mandatos, como J.J Seabra (1912-16, 1920-24), Juracy Magalhães (1931-37, 1959-63), Antonio Carlos Magalhães (1971-75, 1979-83, 1991-94), Paulo Souto (1995-99, 2003-07) e Wagner, por reeleição. 

Ocasionalmente a oligarquia designa um suplente, em função de uma circunstancia, mas este é logo descartado e não consegue fazer sucessor. Regis Pacheco substituiu Lauro de Freitas que morreu em desastre de avião na campanha, o mesmo acontecendo com João Durval Carneiro com morte semelhante de Clériston Andrade. Mudanças na política nacional podem permitir o surgimento de emergentes de transição, como Waldir Pires e Nilo Coelho (1987-91), devido à redemocratização, e Jaques Wagner (2007-14) com a vitória do PT. 

Antonio Carlos, um emergente de 1964, é uma exceção, pois reinou por 40 anos. Nesse período, Paulo Souto, devido à morte de Luis Eduardo, foi o único suplente que não foi descartado. Depois de um hiato de quinze anos a ciranda volta a rodar. “Vocês vão me adesculpar/ Mas arrepito essa expressão/ No Ceará não tem disso não/ Tem disso não!”.

domingo, 3 de agosto de 2014

O que custa mais: buracos ou túneis?

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 03/08/14

Quando ainda não existia a Embasa, toda vez que o Serviço de Água e Esgoto fazia uma ligação recorria a um velho funcionário para saber por onde passava o cano. Mais tarde decidiu-se “racionalizar” o sistema colocando os dutos sob os passeios penalizando os pedestres. Nessa época a rede de esgoto se limitava a área central implantada por Theodoro Sampaio. Quando a Embasa começou a colocar esgoto quebrou toda a cidade. 

Pouco depois, a Telebahia fez o mesmo para instalação da rede de telefonia. Com a chegada dos celulares foi necessário ligar as subestações e torres com cabos de fibra óptica e mais uma vez a cidade teve que ser esburacada. Recentemente foi a vez da televisão a cabo. Omiti a rede de águas pluviais porque esta foi abandonada, com a água correndo pelo leito das ruas alagando as avenidas de vale e acabando com o asfalto.

Tem razão o prefeito quando reclama da Embasa, no que foi secundado por Lídice da Mata recordando seu tempo de alcaide. O prefeito Rudolph Giuliani não permitiu, no final dos anos 90, que se quebrassem as calçadas de Nova York para a entrada de rede de dados. Em resposta, as empresas desenvolveram um engenhoso sistema de fibra-óptica que corre dentro de galerias e tubos de esgoto chegando até cada edifício. Lamento dizer, mas as nossas ruas vão continuar a ser esburacadas pelas empresas de água e esgoto, telefonia e TV a cabo, publicas e privadas e nenhuma lei vai mudar este quadro.

Quando da remodelação da Av. Vasco da Gama lembrei neste jornal que aquela seria a oportunidade para se criar uma galeria subterrânea de serviços. Isto eliminaria valas, buracos, perda de água, roubos de cabos aéreos e baratearia a manutenção dessas redes, Em algumas avenidas de Barcelona existem buzones onde se deposita o lixo que é sugado e transportado à vácuo por galerias. A prefeitura financia esses túneis cobrando pedágio das concessionárias de serviços. A requalificação do Porto da Barra e da Baixa dos Sapateiros são outras oportunidades perdidas. 

Existem hoje tecnologias não destrutivas mais avançadas e baratas. Elas consistem em sondas de até 40 cm de diâmetro acionadas por ar comprimido que são capazes de avançar até 50 m pelo subsolo e revestir este túnel com segmentos de tubo de ferro soldados entre si. Por ele são enfiados cabos elétricos, redes de fibra óptica e tubos de água flexíveis que podem ser retirados, reparados ou substituídos sem precisar quebrar a rua ou o passeio. Diâmetros de até 60 podem ser abertos por rotativas como aquelas usadas para resgatar em poucas semanas 33 mineiros a 700 m de profundidade no Chile. Por estes tuneis podem passar inclusive dutos de esgoto e águas pluviais. Redes de gás podem ser incluídas desde que esses dutos tenham ventilação forçada e chaminés de escape. A cada esquina e meio de quadra são criadas caixas de passagem de onde partem ramais de diâmetros inferiores sob os passeios até chegarem a pares de domicílios. 

Precisamos criar um planejamento público, aberto e competente que encare a cidade em toda sua complexidade e interatividade e nos liberte da dependência das empreiteiras e concessionárias de serviços que só vêm o problema setorial e tentam resolvê-lo com meias solas.

sábado, 2 de agosto de 2014

Homenagem do CAU/BR aos Arquitetos Lelé e Miguel Pereira

Brasília, 10º Plenária Ampliada do CAU/BR, em 18 de julho de 2014.
Cons. Paulo Ormindo de Azevedo


Estamos aqui não para chorar a perda, senão para homenagear os colegas e amigos João da Gama Figueiras Lima, o Lelé, e Miguel Alves Pereira, ou simplesmente Miguel Pereira, e comemorar seus feitos. Comemorar significa lembrar, evocar e festejar e é para isto que estamos aqui reunidos. Duas vidas longas, plenas pessoal e profissionalmente, amados que foram por seus parentes, admirados por seus colegas e amigos e respeitados por seus concidadãos e desafetos. Ambos trabalharam com paixão até à véspera de seu “encantamento”, como diria Graciliano Ramos. Miguel Pereira repetindo Noel não queria choro nem vela, apenas uma fita amarela gravada com o nome dela: “Arquitetura”. Lelé no hospital que ajudou a criar compartindo sua dor com a de acidentados na cidade que ele tentou humanizar. Imagino a comissão de frente da confraria dos arquitetos do andar de cima, o pós-CAU/BR, se acotovelando para receber seus dois novos membros. 

Apesar de este ser um conselho profissional, não vou rever aqui seus acervos técnicos. Isto está no Siccau, nos livros e nos Currículos Lattes. Vou relembrar apenas seus carismas marcantes e trajetórias pessoais e tentar mostrar suas semelhanças e alteridades. Ambos nasceram em 1932, um no Rio de Janeiro o outro em Alegrete no extremo sul, más, coincidentemente, fizeram a mesma profissão e morreram neste mesmo ano de 2014. Ambos eram ateus e do mesmo partido, o PCB, não obstante uma alta espiritualidade, como se nota na igreja da Ascensão do Senhor de Lelé e no titulo do ultimo livro de Miguel, “Arquitetando a Esperança”.

Um era um carioca da gema, da Central do Brasil, musico e boêmio, embora a vida o tenha levado para Brasília e Salvador. O outro um gaucho quase portenho que foi exportado para a UnB em Brasília e depois de um doutorado na Inglaterra importado pela USP de São Paulo. Enquanto o primeiro batucava sambas no piano, violão e acordeom, o segundo tocava os vinis jazzísticos de Charlie Parker, Coleman Hawkin e John Coltrane. Um curtia a caipirinha, o outro era um enólogo refinado, ambos amantes do bom garfo, um da carne, o outro dos vegetais. Lelé afável e despreocupado com o traje, Miguel elegante no tratar e no vestir com seus slacks e coletes de talho.

Lelé começou a trabalhar nos canteiros de obras de Brasília levado por Nauro Esteves e Oscar Niemeyer de quem herdou a facilidade do traço. Miguel começa a trabalhar no escritório privado e a partir de 1961 como professor assistente da Faculdade de Arquitetura da UFRS. Desta, e em especial do Prof. Demetrio Ribeiro, herdou a eloquência do discurso político. Quantas vezes neste plenário acompanhamos suas falas inflamadas e irônicas, que parecia não ter fim? 

Curiosamente o golpe militar iria cruzar suas vidas. Lelé deixando a Faculdade de Arquitetura da UNB em 1965, conjuntamente com 200 professores e servidores, em protesto pelo arbítrio, para fazer o hospital de Taguatinga por oferta de Oscar Niemeyer. O outro trazido em 1968 pelos ex-alunos do curso de arquitetura daquela universidade para reabrir a faculdade. Miguel aqui ficou por oito anos como seu diretor. Lelé se especializou nos canteiros de pré-fabricação da União Soviética, da Tchecoslováquia e da Polônia com uma bolsa conseguida por Darcy Ribeiro, Miguel em Berkley, na Califirnia. A ditadura ceifaria a carreira de professor de Lelé e incentivaria, ironicamente, a de Miguel.

Aquele acontecimento faria com que Lelé se transferisse para Salvador, em 1973, aceitando convite do Secretario Estadual de Planejamento da Bahia, Mario Kertész, no governo de Antonio Carlos Magalhães, para ajudar a construir o Centro Administrativo da Bahia com obras como a igreja da Ascensão do Senhor e as sedes de secretarias de estado gingando como cobras as curvas de nível. Projeta e constrói ainda importantes equipamentos comunitários, como o Terminal de Ônibus da Lapa e a igreja dos Alagados (1979).

Com o sucesso da construção do Hospital de Taguatinga, Lelé é chamado de volta à Brasília para construir o Hospital do Aparelho Locomotor Sarah Kubitscheck, em 1980, quando faz amizade com seu diretor, o Dr. Aloysio Campos da Paz. Amizade que viabilizaria a criação de uma rede nacional hospitalar e mais tarde o Centro Tecnológico da Rede Sarah, CTRS, por ele dirigida. No ano seguinte, ele constrói o Sarah de Salvador, com inovador sistema de ventilação responsável por um dos mais baixos índices nacionais de infecção hospitalar.

Em 1984, aceitando o convite de um frei, constrói com escassos recursos econômicos e técnicos a Fabrica de Abadiana, para edificação de escolas e pontilhões. É ali que ele começa a desenvolver a tecnologia da pré-fabricação leve com argamassa armada. No segundo mandato do Prefeito Mario Kertesz, 1985-1989, cria a Fabrica de Equipamentos Comunitários de Salvador, FAEC, onde aperfeiçoa a tecnologia da argamassa armada aplicada a escolas, abrigos, bancos, escadas-drenantes, lixódutos e passarelas cobertas que seriam reproduzidas em todo o país. Monta em 15 dias o Palácio Tomé de Souza, do Executivo Municipal, no centro de Salvador e recupera com Lina Bardi casas antigas no Pelourinho.

Com a redemocratização, Lelé é levado por Darcy Ribeiro para o Rio de Janeiro do governador Leonel Brizola para fazer com Oscar Niemeyer os CIEPS. Na Fábrica de Escolas são produzidos componentes leves que podiam ser levados no ombro pelas escadarias para a construção de escolas-classes no auto dos morros, onde não chegavam os caminhões. As escolas-parques do sistema concebido por Anísio Teixeira, projetadas por Oscar Niemeyer, acabariam eclipsando as escolas-classes de Lelé, por sua maior visibilidade na parte baixa da cidade. 

Nos anos 90, ainda com a mediação de Darcy, realiza a rede nacional dos Centros Integrados de Ensino, ou CIACs, durante o governo Collor de Mello. Com o apoio do CTRS fundado em 1991 em Salvador constrói os Hospitais Sarah de Fortaleza (1991), Belo Horizonte (1993) e Lago Norte em Brasília (1995), sedes de Tribunais de Contas da União em oito estado, da Fundação Darcy Ribeiro em Brasília (1996) e o Tribunal Regional Eleitoral, em Salvador, em 1997, demonstrando uma enorme capacidade gerencial e empreendedora. Em todas estas obras painéis de Athos Bulcão, seu amigo.

Depois de ter oito de suas sedes construídas pelo CTRS, o Tribunal de Contas da União descobre que um centro tecnológico dependente de uma rede hospitalar não podia construir edifícios para outras instituições. Mesmo sem o CTRS, Lelé constrói ainda o Sarah do Rio de Janeiro. Diante desta nova situação, Lelé com ajuda de Haroldo Pinheiro, parceiro em muitas obras, se volta para um sonho da década de 1970, o Instituto Habitat, de produção industrial e formação de arquitetos em pré-fabricação. Mas a doença e a política já não o permite avançar muito. 

Lelé reconcilia em sua obra a milenar tradição dos arquitetos da antiguidade e medievais de conceber e construir, tornando-se um arquiconstrutor. Sua intensa atividade nas fabricas e nos canteiros de obras lhe impediu de escrever tudo que tinha a dizer. Mesmo assim a maioria dos livros sobre a sua obra resultaram de longas entrevistas e material gráfico elaborado por ele. Um dos seus poucos livros-solo, “Arquitetura: uma experiência na área de saúde” ganhou o premio Jaboti em 2013. 

Voltando a Miguel, depois da direção da Faculdade de Arquitetura da UnB, ele assume a coordenação da Comissão de Formação Profissional da UIA (1971-1977), a presidência nacional do IAB, entre 1972 e 76, e a coordenação do CEAU junto ao Ministério da Educação, de 1973 a 1977. Nos três anos seguintes iria fazer especializações na Rice University, do Texas, e University of Califórnia, retornando em 1980. Entre 1987 e 1993 ele se reveza entre o Brasil e a Inglaterra fazendo uma especialização na Architectural Association of London e doutoramento na University of Sheffield. Contemporaneamente volta à presidência nacional do IAB, entre 1989 e 1991. 

Durante a estadia na Inglaterra, Miguel é eleito Membro do Conselho Superior da UIA e no período 1999-2002 seu Vice-Presidente. Com o clima de abertura política retorna ao Brasil e é requisitado pela Faculdade de Arquitetura da USP em 1981 onde permanece até a morte como professor associado. Neste período, além de atividade profissional como arquiteto, organizou a primeira Bienal Internacional de Arquitetura e foi eleito membro do Conselho da Fundação Bienal de São Paulo. Miguel publicou oito livros, entre 1977 e 2014, sobre a arquitetura contemporânea brasileira, ensino de arquitetura e participação na UIA. Encerrou sua atuação gremial, entre 2012 e 2014, como conselheiro do CAU/BR que ajudou a criar. 

A atividade acadêmica e de representação profissional não deixou muito tempo para Miguel se dedicar à prancheta, contudo teve escritório próprio entre 1959 e 1970 no qual realizou projetos de varias residências que balizam sua evolução profissional. Mais importante foi a sua participação, entre 1962 e 1970, no grupo de trabalho para projeto da Refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas, RGS, um parque industrial de 140.000 m², em parceria com Carlos Fayet, Moacyr Marques e Claudio Araujo. Em 1970, projetou a Biblioteca Central da UnB em companhia dos colegas José Galbinski, Jodete Sócrates e Walmir Aguiar . 

Ganhou alguns concursos de arquitetura em parceria com outros colegas, como o do Museu Monumento a Pedro de Toledo, S. Paulo 1961, e do Instituto Concórdia em São Leopoldo, não construídos. Ganhou ainda os terceiros lugares nos concursos de projetos do Departamento Federal de Segurança Publica de Brasília, 1967, e da Sede da Petrobrás no Rio de Janeiro, em 1968 e o quarto lugar no concurso para a Biblioteca Central da Bahia (1968). Entre 1976 e 1977 foi chefe de projetos dos escritórios de Nestor Goulart Reis Fº e Joaquim Guedes. Em 1999 se associa a Gilberto Belleza e Maria Clara Batalha em escritório próprio onde permaneceu até a morte. 

A obra de Miguel Pereira segue uma linha modernista clássica em concreto armado com forte influencia de Mies van der Rohe e de Oswaldo Bratke. A de Lelé concilia a tradição barroca e oscariana com a industrial, com o uso de técnicas diversas, a começar pelo tijolo, como na igreja dos Alagados, passado pelo concreto e argamassa armada, o aço e os plásticos. Sua preocupação ecológica o leva a usar princípios da física, como a convecção e o efeito Venturi para proporcionar conforto ambiental sem uso da energia. Utiliza pioneiramente no mundo a mecatrônica para regular automaticamente brise-soleils e abrir e fechar claraboias, como no auditório do Sarah do Rio de Janeiro.

Ambos tiveram a mesma preocupação social. Miguel pretendia mudar a realidade social através da formação de agentes qualificados, arquitetos e urbanistas, na transformação do espaço urbano. Lelé buscava oferecer a administradores públicos e à comunidade soluções técnicas alternativas que pudessem facilitar as transformações urbanas e sociais ao criar uma pré-fabricação menos massificada, mais humanizada e bela.

Os dois tiveram sua obra reconhecida em vida. Lelé ganhou duas vezes o Premio Bienal Internacional de Arquitetura, em 1998 e 2002, titulo de doutor honoris causa da UFBa em 2003, Grande Premio Latino Americano na 9ª Bienal Internacional de Arquitetura, em 2001 e Medalha de Ouro da Federação Pan Americana de Associações de Arquitetos, FPAA, em 2012.

Miguel, por seu turno, foi membro honorário dos Colégios de Arquitetos do México e do Peru, da Sociedade Central de Arquitetos da Argentina, e da União de Arquitetos da Rússia. Recebeu as medalhas de Ouro do IAB e do Mérito do Confea, além do titulo de “Professor” da International Academy of Architecture of America. IAA. 

Quando colegas como Lelé e Miguel morrem podemos dizer o mesmo que Ernest Hemingway disse da morte do jovem Robert Jordan, das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola: “quando morre um homem morremos todos, pois somos parte do mesmo gênero humano. Por isso não pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

domingo, 20 de julho de 2014

A Copa das surpresas e do despertar

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA, A Tarde de 20/07/14

Um dos ingredientes mais importantes num espetáculo é a surpresa. Neste sentido Copa da FIFA de 2014 foi um sucesso, mas não só por isso. Ninguém poderia imaginar que as seleções da Espanha, Itália e Inglaterra não passariam das eliminatórias, e que o anfitrião pentacampeão tomasse tamanha goleada. Surpresas também positivas, como a Copa transcorreu tranquila, contra todos os prognósticos da mídia, sem violência, arrastões e protestos, inclusive como os que ocorrem durante os World Economic Foruns. 


Comportamento exemplar do publico, inclusive nas derrotas, como dizendo roupa suja se lava em casa, mas tem que ser lavada. Nosso governo que foi desrespeitado e se submeteu a todas as exigências absurda da FIFA, mudando leis, abrindo mão do aluguel das arenas e impostos, tomou coragem não abafando os indícios de corrupção de um diretor da Match ligada à FIFA. 



Surpresa também que países pequenos como a Costa Rica, Bélgica e Holanda chegassem às quartas de finais e perdessem só nos pênaltis. Todos países de grande tradição democrática, que não permitem o desvirtuamento do esporte e transformação dos jogadores em mercadoria de exportação. A Alemanha venceu porque planeja e leva o esporte a serio, com uma seleção domestica, sem prima-donas e gestão técnica. Nossa seleção titular só tinha um jogador de casa, Fred, e teve três técnicos em quatro anos, manipulada pela nebulosa CBF.



Precisamos voltar a ser o país do futebol. Hoje o público nos nossos estádios é menor que o da Austrália e dos EE UU, e com a “gentrificação” das arenas tende a diminuir. As ruas estavam vazias com o povão em casa assistindo aos jogos nas telas grandes de TV. O Fest fan, com telão e shows, era dos turistas e da “elite”. Precisamos fortalecer os times locais e legalizar e equipar nossos campos de várzea e de peladas, que podem tirar nossos jovens da droga. Dos 20.000 jogadores brasileiros, 80% ganham menos de dois salários mínimos, devido a ação da CBF e da mídia televisiva que transformou o futebol do Sul Maravilha em espetáculo de TV de após novela. 



Mas o futebol tem uma função social maior, como dizia Thales de Azevedo em 1973 no artigo “Futebol como objeto de estudo” publicado neste jornal. Ele já exaltava a função educativa do futebol, e o papel da crônica esportiva incentivando o raciocínio critico sobre “as técnicas e estratégias desenvolvidas pelos treinadores, as hierarquias profissionais e sociais nas equipes, as combinações de jogadores no campo, as características de cada membro dos times...”. Outro antropólogo, Roberto da Matta, afirma que o futebol brasileiro reflete a nossa sociedade e vice versa. Foi o que se viu nessa copa.



A TV Globo depois de uma campanha ufanista vazia descobre que o rei está nu e seus repórteres passam a acusar o técnico e os jogadores. Como disse Romário, a culpa não é deles, senão dos cartolas, “um bando de ladrões, corruptos e quadrilheiros”. Campeões mundiais como Pelé e Romário que vêm denunciando o cartel FIFA/CBF/TV foram defenestrados da Copa. Precisamos restaurar o Clube dos 13, ouvir o movimento Bom Senso Futebol Clube e atualizar a Lei Pelé para resgatar o nosso futebol. Que esta derrota, como a de 50, deflagre uma nova era do futebol no país. 

sábado, 5 de julho de 2014

Decifra-me ou te devoro

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 06/07/14.

As grandes manifestações de rua do ano passado, que replicam até hoje, é um enigma semelhante ao da esfinge de Tebas. Ninguém até agora conseguiu decifra-lo. Será que foi por acaso que a multidão tentou invadir o Congresso, o Itamaraty, palácios estaduais e municipais, quebrar agencias de bancos e lojas de carros de luxo e queimar centenas de ônibus em todo o país? 

Quem era e o que queriam aqueles “vândalos”, que segundo as autoridades e mídia não faziam parte do admirável gado novo apascentado, ninguém sabe por quem, pelas avenidas de todas as capitais do país? Estranho que isto ocorra quando 34 milhões saíram da pobreza, o emprego está em alta e a classe media surfa no consumo. As antenas do poeta Arnaldo Antunes já haviam captado esta insatisfação em 1987: “Comida é pasto. A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. A gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade”. 

Dizer que as manifestações foram apenas contra a Copa e orquestradas pela mesma elite que vaiou a presidente no Itaquerão é querer tapar o sol com a mão. Ainda não existe uma explicação para o fato, mas uma das melhores abordagens da questão foi feita pelo sociólogo e professor da PUC-Rio Luiz Werneck Vianna em entrevista na Revista de Historia da Biblioteca Nacional, do mês de junho, nº 105. Luiz Werneck é um intelectual de esquerda, que não faz parte da elite nem da mídia conservadora.

Werneck afirma que o economicismo tradicionalmente usado para explicar acontecimentos sociais não decifra esses novos fenômenos. “Ficou claro que há uma distancia imensa entre o estado e a sociedade, apesar da existência de todos esses aparelhos... para dar conta de questões especificas, como gênero, juventude”. Conflito que é dramático nas UPPs do Rio e de S. Paulo. “Há um verdadeiro levante popular que não se encontra com nenhuma mediação institucional: partidos, sindicatos, associações. Uma energia muito forte que não é canalizada para um fim determinado” (p.50), afirma ele. 

Werneck admite que o movimento estivesse originalmente ligado a uma classe média emergente e até a setores tradicionais: “O Movimento Passe Livre, por exemplo, nasceu na USP com estudantes de origem financeira mais alta. Mas o fato é que isto galvanizou a imaginação dos jovens que se fizeram presentes. E a questão toda gira em torno de por que eles não encontraram canais visíveis e já estabelecidos para onde essas demandas pudessem desembocar” (p. 50). 

Sobre esta falta de comunicação comenta: “Vencidas as eleições, o PT negligenciou sua própria identidade. Deixou de ser um partido da sociedade civil, mobilizador, e passou a viver como um partido de Estado, com políticas de Estado para seres subalternos selecionados, hiperburocratizado, perdeu capacidade de organização, deixou de exercer papel pedagógico, de ensinar às pessoas o que está passando, o que se pode fazer”(p.52). Os demais partidos também perderam a identidade. “O que se está disputando (agora) nem é um projeto de sociedade ou país. Trata-se de quem irá administrar, no dia a dia, essa cinzenta ordem burguesa no país” (p.53). Esta reflexão é importante para reaproximarmos o estado da sociedade. 

domingo, 22 de junho de 2014

Barrados no baile

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 22/06/14

Tem razão o establishment quando afirma que as manifestações conta a Copa é um movimento de classe media e que as agressões grotescas e pueris à presidente não vieram do povão, que não tinha dinheiro para entrar no Itaquerão. Mas o argumento é incongruente, pois admite que as arenas não foram concebidas para o povo, senão para a classe media alta e globalizada. 

O povão não participa da Copa e a assiste em casa pela TV, como se ela fosse um campeonato em outro continente. Há muito poucos torcedores nas ruas e bares da periferia ou em volta das arenas. Populares ouvidos pela mídia dizem que esta é uma copa dos “brancos” e dos gringos. Este que era um esporte abrilhantado por negros e mestiços. Traço que já havia sido assinalado por Gilberto Freyre em artigo de 1938 com o titulo Football mulato e no primeiro livro sobre o tema, O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho publicado em 1947.

Como eu previa em artigo de 16/3/14, em Salvador a Copa teria muito menos impacto que o carnaval. A ocupação hoteleira é de 70% e Salvador é o sexto destino turístico entre as sedes da Copa graças à falta de planejamento. A BR 324 está engasgada com obras em sete pontilhões, o metrô nanico é exclusivo para os portadores de ingresso da Copa, não se pode caminhar no Porto da Barra, ponto emblemático da cidade, de tão esburacado que está e as ruas vizinhas e o estacionamento da Fonte Nova foram interditados. Não está disponível nenhum guia ou mapa da cidade, nenhuma sinalização ou indicação da boa culinária baiana, galerias de arte, shows e rodas de capoeira. 

Em 2007 o Brasil crescia e Lula queria comemorar os dez anos do PT no poder e os 30 milhões de brasileiros que deixaram a pobreza absoluta. Mas nestes sete anos a economia minguou, o custo das arenas foi triplicado sem nenhum legado urbano e os que passaram a ter pão se juntaram à classe media rebaixada e insatisfeita com a mobilidade urbana, a saúde e a educação. Este quadro contrasta com os R$ 35 bilhões superfaturados, que ultrapassam as três ultimas Copas juntas. Enquanto na África do Sul um assento numa arena custou US$1,500, na Alemanha US$2,530, no Brasil chegou a US$5,500. O público se sente traído por pagar o baile e ser barrado na entrada. Perdemos a Copa fora das arenas e a Seleção sua para vencer dentro delas. 

A FIFA se transformou num cartel em que os países sedes dos jogos arcam com vultosas despesas e ela, isenta de impostos, fica com todo o lucro, estimado em R$15 bilhões, de fornecedores, merchandise, transições de TV e bilheterias. Seus diretores são vitalícios e não se conhece nenhuma obra educativa ou social da FIFA. Para onde vai todo este dinheiro na Suíça? O modelo de copa da FIFA é absurdo e caduco, contrariando todos os princípios do bom senso e da ecologia: insustentável, excludente, negador da cultura local, uni supridor de alimentos e bebidas e não reciclador de estádios. 

A Seleção não é mais a pátria de chuteiras de 1970 em que o futebol era o ópio do povo nos anos de maior repressão. Avançamos muito politicamente ao contestar a prioridade do circo. É bom lembrar que movimentos revolucionários sempre foram deflagrados pela classe média inflamando multidões. Vide Rússia, China e Cuba.

domingo, 8 de junho de 2014

Um gosto amargo de perda

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 08/06/14

As comemorações dos 100 anos de nascimento de Diógenes Rebouças com a exposição de 80 telas dele no Museu de Arte do Estado e 70 anos do inicio dos trabalhos do Escritório do Plano Urbanístico da Cidade do Salvador com a publicação do livro “Acervo do EPUCS, contextos, percursos, acessos” coordenado pela Profa. Ana Fernandes não têm nada de pitoresco ou saudosista, senão de protesto e denuncia.

Protesto do próprio Diógenes que abandona a profissão aos 50 anos ao ver os rumos que a cidade tomava com a liberação do uso do solo e a pratica da “arquitetura do m²” feita pelos corretores. Prevendo o urbanicídio de Salvador ele procura resgatar em acrílico a cidade que ainda alcançou e que começava a ser destruída. Durante dez anos ele reconstruiu 70 cenas de Salvador que seriam publicadas em 1977 no livro “Salvador da Bahia de Todos os Santos no século XIX” com notas de Godofredo Filho editado pela Odebrecht.

A exposição e seminários organizados pela Faculdade de Arquitetura da UFBA e IAB-Ba são uma mostra da cidade que perdemos e o livro sobre o EPUCS da regressão urbanística que sofremos. Cidades que foram destruídas na ultima guerra foram reconstruídas para restaurar a autoestima de seus habitantes. Nós fizemos a trajetória inversa, destruímos a cidade para criarmos a guerra da segregação sócio-espacial, da violência e da imobilidade urbana. Não podemos voltar à cidade perdida, mas podemos parar a barbárie e construir uma cidade mais humana, que não seja apenas mercadoria.

O livro sobre o EPUCS é uma demonstração da seriedade e criatividade de um plano feito em condições adversas de uma prefeitura falida e uma cidade estagnada, mas com o norte no futuro. É também uma denuncia do pouco apreço de nossos alcaides pelo planejamento. Dez anos de trabalho foram necessários para salvar fragmentos de mapas, plantas, maquetes e textos feitos por uma equipe dedicada sob uma das administrações mais desastrosas dessa cidade, que por não ter controle de nada não se deu conta que a revelação daquele acervo colocaria como antagônicos o EPUCS e sua administração.

O livro não chega a analisar o enorme volume de informações contidas nos documentos elaborados por uma equipe multidisciplinar de urbanistas, arquitetos, cartógrafos, topógrafos, sociólogos, demógrafos, médicos e botânicos. Era preciso primeiro resgatar as fontes para que outros pesquisadores possam mergulhar na sua analise. Mas o livro põe em cheque os processos arbitrários de decisão pública e cria um referencial que se não for seguido no novo PDDU e Lous os condena a ter o mesmo fim dos anteriores rejeitados pela população e anulados pela Justiça.

O EPUCS foi uma das experiências mais avançada de urbanismo de seu tempo, quando no Brasil ele ainda era praticado apenas por engenheiros sanitaristas. A equipe sem descuidar dessas questões centrou seu trabalho nos questões sociais e ambientais de Salvador. Infelizmente os estudos foram paralisados com a morte de seu idealizador, Mario Leal Ferreira. O plano seria macaqueado vinte anos depois, quando a cidade já havia dobrado de população e seu centro mudado para o Iguatemi. As telas de Diógenes e o livro do EPUCS são apenas registros, mas nos deixam um amargo no olhar.

domingo, 25 de maio de 2014

Você já foi ao Ceará? Não? Então vá!

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 25/5/2014

Nenhum estado brasileiro foi mais deserdado pela natureza do que o Ceará. Cerca 93% de seu território está no Polígono das Secas. Raquel de Queiroz fez seu “debut” na literatura com o romance “O quinze” em que conta o horror da seca de 1915. Hoje aquele estado é um dos mais desenvolvidos do Nordeste com uma enorme classe media que enche os restaurantes e as lojas durante toda a semana. Fortaleza é o município com maior PIB do Nordeste e o Ceará o estado com a melhor qualidade de vida do Norte e Nordeste. Pude comprovar isto há algumas semanas quando fiz ali uma palestra no XX Congresso Brasileiro de Arquitetos.

Em grande parte isto se deve ao trabalho desenvolvido ao longo de 105 anos pelo DNOCS. Hoje o estado tem 144 açudes para irrigação e abastecimento urbano e só os trinta maiores tem capacidade de 19 bilhões de m³, mais da metade de todo o Nordeste. O maior deles, o Castanhão, tem 6 bilhôes m³ e o maior da Bahia, Cocorobó, construído para afogar Canudos, não passa de 245 milhões. A outra razão foi a opção pela pequena e media empresa, como confecções, sapatarias e lavouras de algodão e caju, que geram mais emprego que as grandes. O Mercado Central de Fortaleza é uma mostra da força dessa economia popular. Ao DNOCS se somou o Banco do Nordeste, que tem realizado uma serie de estudos e financiado prioritariamente o desenvolvimento daquele estado. 

Pernambuco, por seu lado, é sede da Fundação Joaquim Nabuco, da Sudene e da Chesf. Essas instituições são responsáveis pelo pensamento e financiamento de grandes projetos. Nossos políticos nunca conseguiram atrair para a Bahia nenhuma grande agencia federal e perdemos todos os bancos, públicos e privados, temos apenas uma repassadora de recursos federais. Os nossos governantes não gostam de planejamento, preferem o clientelismo fisiológico. Cada nova gestão, interrompe os projetos iniciados pela anterior e não consegue concluir os seus. A Comissão de Planejamento Econômico criada por Rômulo Almeida teve vida curta, não obstante os enormes serviços prestados ao estado, com a criação do CIA e Copec. 

Os portos da Bahia estão saturados e ultrapassados. Pecém, no Ceará, é o porto nacional mais próximo da Europa e dos Estados Unidos. Em sua retroárea está sendo construída uma siderúrgica e em breve deve ser iniciada uma refinaria. O aeroporto de Fortaleza é o portão mais rápido e barato de ingresso no país e o turismo vem crescendo a índices elevados. Um “pirata” português resolveu abrir sua boate no dia de descanso de outras casas noturnas, a segunda feira, e é um sucesso estrondoso. Aproveitando essa onda turística está sendo inaugurado um aeroporto internacional em Aracati, onde se encontra a famosa praia de Canoa Quebrada.

O PDDU da capital é desenvolvido pelo Instituto de Planejamento de Fortaleza em estreita colaboração com a academia e discussão com as entidades de arquitetos-urbanitas e engenheiros. Um dos seus pontos altos é o Plano de Mobilidade que prevê três linhas subterrâneas de metrô e uma de VRT, além de BRT e ciclovias, já em execução. Para se livrar do superfaturamento das empreiteiras o estado comprou um tatuzão (TBM) para abrir os tuneis. A preocupação com a mobilidade não se restringe à capital. Duas linhas de VLT estão sendo construídas em Sobral e ligando Juazeiro do Norte a Crato. Um detalhe, os vagões dos metrôs e VLTs são fabricados no estado, sobre chassis importados. Os nossos PDDUs são malas pretas. Outra inovação do estado foi a criação do sistema de agentes de saúde. Nem tudo é uma maravilha no Ceará, mas se discute, se briga, e se decide participativamente.

Estas observações, com grande recorte temporal, não são uma critica a nenhuma administração em especial, senão uma reflexão sobre as diferentes governanças dos estados. O exemplo do Ceará visa servir de estimulo e contribuição aos planos de governo e prioridades de ações que estão sendo elaborados pelos candidatos ao futuro governo. É fundamental criarmos um centro de planejamento e formação de lideres e quadros públicos para levantarmos a Bahia de seu berço esplêndido.

domingo, 11 de maio de 2014

Perguntas frequentes

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 11/5/2014


O manual do usuário de qualquer produto novo apresenta três seções: para que serve o produto? como funciona? e perguntas frequentes. Na falta das duas primeiras, me antecipo respondendo algumas perguntas frequentes. A ponte Salvador/Itaparica que parecia morta foi relançada com o anuncio do governador de licitá-la antes de deixar o governo e novas contratações de pareceres e projetos para justificar uma decisão tomada em reunião social sem qualquer estudo prévio.

1º - A ponte faz parte do sistema viário de onde? Uma ligação rodoviária não pode competir com uma ferrovia como a Fiol na exportação de minérios e grãos do oeste, mesmo porque o porto de Salvador não opera graneis. Não serve também ao litoral sul, quando está sendo construído o Porto Sul e um novo aeroporto em Ilhéus. Atrações como Itacaré e Barra Grande são mais acessíveis por Ilhéus.

2º - A ponte substituirá a hidrovia? – Os moradores de Niterói sabem que é melhor pegar a barca e saltar no centro do Rio que enfrentar filas, engarrafamentos e pedágio e não poder estacionar no Rio. Os ferries vão continuar transformados em barcas de passageiros.

3º - A ponte será um escape ou ladrão para Salvador? Quem atrai mais: Salvador ou Nazaré? A ponte irá apenas congestionar Salvador e a Estrada do Côco trazendo os veículos da BR-101 e BR-116 para o litoral norte onde estão o aeroporto, praias, Copec, Ford e acesso ao Nordeste. Quem perde com isso é S. Antonio de Jesus, Salvador e Feira de Santana. A ponte irá ainda duplicar a RMS aumentando sua função de dormitório e prestador de serviços de educação, saúde, abastecimento e lazer para trabalhadores que enriquecem outros municípios. A solução tem que ser ferroviária, pois a ponte será tão engarrafada quanto a Paralela.

4º - Itaparica será uma expansão de Salvador? A classe média quer centralidade, ficar junto do emprego, dos colégios e universidades, dos hospitais, do teatro e dos cinemas. Também não tem lógica criar conjuntos habitacionais para operários que irão trabalhar em Candeias, Simões Filho e Camaçari, sujeitos a esperar horas para a passagem de plataformas de petróleo e guindastes. A Ilha será apenas um acampamento rodoviário como São Gonçalo junto a Niterói.

5º - A ponte beneficiará a RMS e o Recôncavo? Saltando de Salvador para Jaguaripe a ponte irá marginalizar ainda mais o Recôncavo com seu enorme potencial turístico e náutico. A baía também perde com um gargalo na sua boca dificultando o acesso a seus quatro portos internos: Aratu, Temadre, Regaseificação e Estaleiros de S. Roque.

6º - Qual a importância econômica da ponte? Se não serve ao oeste. ao sul ou a RMS o que ganha o estado com esta ponte rodo-eleitoral? Não sabemos responder. Mas “Pergunte ao José”, saudoso programa radiofônico baiano.

7º - Quanto pagaremos pela ponte? Todos sabem que uma ponte não se paga pelo pedágio. A solução apontada de leilões de CEPACs não está funcionando nem no Porto Maravilha, no centro do Rio. Sem esquema financeiro assegurado, ela será iniciada e parada e as empreiteiras irão receber durante anos por terem seu contrato suspenso como aconteceu com o metrô perna-de-pau de Salvador. Mesmo que a União banque uma parte, teremos que pagar uma divida monstruosa, o equivalente a quatro superportos tipo Mariel em Cuba, ou três refinarias de Pasadena, ou ainda as doze arenas da Copa, enquanto o sertanejo, a lavoura e o gado morrem de sede no semiárido. 

8º Não haveria uma alternativa mais interessante? Sim, seria a construção da Envolvente Rodo-Ferroviária de Kerimorê ou BTS, ligada ao novo porto de Salinas da Margarida, projeto que custaria um terço da ponte e teria efeitos socioeconômicos e culturais muito maiores. Ela alavancaria o desenvolvimento do Estado e da RMS e integraria todo o Recôncavo com um trem rápido metropolitano fazendo a ligação Salvador-Feira com variante para São Roque/Itaparica. E ainda reduziria para um terço o acesso de carros para a ilha e criaria milhares de empregos perenes.

P.S. - Não confundir “Pergunte ao José” do mestre Cid Teixeira com “José”, poema de Carlos Drummond de Andrade.

domingo, 27 de abril de 2014

E o “guayacán” voltou a florir...


Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 27/04/1

Era uma vez uma cidade chamada Guayacán dominada por um barão perverso, sétimo homem mais rico do mundo e dono de 80 % do comercio mundial de sonhos e pesadelos. Grande parte de seus habitantes eram mulas, que transportavam sonhos pesados como chumbo. Sua lei era “plata o plomo” - dinheiro ou chumbo - e com isso ele controlava juízes, legisladores, governantes e cidadãos. Três candidatos a presidentes de seu país e milhares de mulas suspeitas e rivais foram mortos por ele. Em 1991 o número de homicídios por cem mil na cidade era de 381. Dois anos depois a cidade se revoltou e o matou, mas continuou dominada pelo barão de uma cidade vizinha. A partir de 2004 esta “Sin City” começou a mudar, quando o irmão do governador do estado, sequestrado e morto um ano antes, resolveu assumir a luta e mudar o estado e a cidade. O guayacán, o nosso ipê amarelo, voltou a colorir os tetos de zinco da grande favela.

Esta não é mais uma fabula cruel com final feliz, é uma historia real. Guayacán é o símbolo de Medelín, na Colômbia, e o barão era Pablo Escobar. Em 2007 a taxa de homicídios despencou para 34 e o índice de alfabetização subiu para 96,65%. Medelín conseguiu isto rompendo a segregação sócio-espacial com um inovador sistema de metrô, BRT, teleféricos e escadas rolantes, que chega aos pontos mais isolados da cidade. Ali foram instaladas bibliotecas-parques, escolas e museus de primeiro mundo, e não meias-solas, onde se faz a inclusão social.

Há três semanas, pessoas vindas de todos os cantos do mundo vieram conhecer o milagre de Medelín. O prefeito Aníbal Gaviria(48) e seu parceiro nesta luta, o governador da província de Antioquia Sergio Fajardo, se juntaram ao premio Nobel de economia Joseph Stiglitz, ao Dr. Joan Clós, diretor executivo do Habitat e ao ex-prefeito de Nova York, o bilionário Michael Blomberg para divulgarem para o mundo o que aconteceu na cidade, no VII Fórum Urbano Mundial, da ONU-Habitat. Uma dezena dos maiores profissionais e teóricos do urbanismo foi convidada a avaliar criticamente a experiência de Medelín.
Prefeitos, entre os quais a nossa vice, empresários, diretores de fundações e ongs, lideres sociais e tribais e técnicos, como este escriba representando o CAU/BR, discutiram o futuro das cidades em mesas redondas e diálogos. O tema central era Equidade Urbana no Desenvolvimento de Cidades para a Vida. Dentro deste marco foram discutidos os efeitos das mudanças climáticas; o processo acelerado de urbanização que transformou nossas cidades em favelões; a crescente segregação sócio-espacial com barreiras físicas e sociais, a mobilidade urbana e a inclusão social para combate à violência.

A escolha de Medellín não foi por acaso, a cidade acaba de ganhar o concurso City of the Year, organizado pelo The Wall Steet Journal, como a cidade mais criativa do mundo. Este milagre se deve a inclusão social realizada pelas empresas publicas Desarrollo Urbano e Transporte Masivo del Valle de Aburrá, da mais alta qualificação e eficiência voltadas para o social. O premio Nobel Stiglitz sintetizou a experiência: “O que me agrada em Medelín é que se está focando o conceito de dignidade, ao criar espaços atrativos e fazer as pessoas se sentirem bem. Não é apenas uma luta pela sobrevivência, é uma aposta no brilhantismo”.

O prefeito Gaviria é um administrador formado em Harvard. O governador Sergio Fajardo é professor universitário e ex-diretor do Centro de Ciência e Tecnologia de Antioquia. É uma pena que nossos secretários de planejamento estadual e municipal não estivessem presentes para se contaminar com Medelín como fizeram 20.000 administradores e técnicos de todo o mundo.

Apesar de sermos a 13ª cidade mais violenta do mundo, a experiência de Medelín nos renova a esperança. Mas para isto temos que apostar na reconstrução do setor público, no planejamento com foco no social, na inteligência e criatividade de nossos cidadãos. Não podemos continuar a licitar projetos apócrifos pelo menor preço. Temos que respeitar a dignidade do nosso povo.

domingo, 13 de abril de 2014

O culto brasileiro ao belo


 Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 13/04/14

A unidade verdadeiro-bom-belo foi formulada originalmente na Idade Média, mas se transformou num clássico. No século XIX, Victor Cousin em um livro de grande sucesso, que tem este titulo, afirmou que em todas as épocas estas foram as preocupações básicas da filosofia. Coube a Frederich Nietzsche, em 1886, mostrar o antagonismo destas três ideias. O culto brasileiro ao belo parece confirmar a observação de Nietzsche. Aqui o belo é um valor dissociado e até antagônico aos demais itens da tríade. Exemplo disto é a proliferação de lojas de decoração, academias de ginástica, spas, salões de beleza, clinicas de cirurgia plástica e ortodontia, que nada têm a ver com o bom e o verdadeiro.

A arquitetura colonial brasileira é mais barroca e bela que sua matriz portuguesa dita chã. Niemeyer dizia que sua obra reproduzia as curvas graciosas da paisagem carioca e da mulher brasileira. Nenhum profissional liberal ou butiqueira que se preze dispensa uma decoradora para dourar seu consultório ou loja com moveis de design não necessariamente cômodos. Este é um requisito fundamental para o sucesso profissional ou comercial, o que confirma que os seus clientes são também cultores do belo. Por isso, não obstante os preços exorbitantes de móveis, tapetes e objetos de design, as lojas do ramo se reproduzem como coelhos em cidades grandes, médias e até pequenas. Esta preocupação estética não se restringe aos espaços de trabalho ou morar, se estendendo ao próprio corpo, num narcisismo próprio dos brasileiros.


O segundo lugar da bela Marta Rocha no concurso de Miss Universo em 1954 provocou uma comoção no país quase igual à perda da Copa de 1950. Vinicius de Morais pedia desculpa às feias, mas dizia que beleza era fundamental.

O Dr. Keneth Cooper, autor do livro Aerobics (1968), treinador das forças armadas norte-americana e conselheiro da seleção brasileira na década de 1970, afirmava que em nenhum país seu método de fazer corpos sarados teve tantos aficionados como no Brasil, a ponto de seu nome ser sinônimo de jogging.


O Brasil é campeão mundial de cirurgias plásticas. Os nossos cirurgiões são considerados dos mais competentes do mundo, perdendo apenas para os colegas tailandeses em operações transexuais. Algumas mulheres fazem operações plásticas periódicas para diminuírem ou aumentarem os seis, o glúteo e colotes em função da moda. Uma brasileira residente nos Estados Unidos é a campeã mundial de seios siliconados, alguma coisa da ordem de quatro quilos, o que lhe salvou em um acidente de carro quando o air bag falhou. Modelos e atrizes se internam em spas durante semanas ou fazem lipoaspirações para uma simples apresentação ou sessão de fotos para revistas masculinas. Também os homens já aderiram a esta prática para mostrar o tórax malhado sem fazer esforço, ou eliminar barrigas hemisféricas, “pneus” e carecas.

Turistas estrangeiros se espantam com a quantidade de pessoas, inclusive de baixa renda, que usam aparelhos de ortodontia nas nossas cidades. Hoje simulacros desses aparelhos, coloridos para serem mais atrativos, são vendidos em tabuleiros de camelôs ao lado de sutiãs e ancas infláveis ou acolchoadas. Perto dali estão as tendas de tatuadores com álbuns de dragões orientais, aves do paraíso, corações flechados, abecedários artísticas e frases do “secretario amoroso” para serem tatuados em homens e mulheres apaixonados ou narcisista que querem atapetar todo corpo com desenhos coloridos.

O belo nesses casos não corresponde ao verdadeiro. Pelo contrario, uma mulher ou homem siliconado, ainda quando considerado belo, está mais para propaganda enganosa que para a autenticidade. Do mesmo modo, sua beleza não corresponde ao bom, ou saudável. O cantor Netinho quase morreu por abusar de anabolizantes para aumentar a massa muscular e se apresentar de peito nu em frente de suas admiradoras e fãs.

Todo arquiteto sabe que a função da decoração é encobrir um defeito de construção. Os maquiadores podem dizer o mesmo e Caymmi sintetizou isto muito bem numa canção quando ele pediu a Marina morena para não se pintar, “pois você já é bonita como Deus lhe deu”.

domingo, 30 de março de 2014

O enigma baiano revivido

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde, 30/03/14

 Os 50 anos do golpe de 1964 tem ensejado reflexões sobre a história recente da Bahia em periódicos e o recém encerrado III Fórum do Pensamento Crítico dedicado ao “Autoritarismo e Democracia no Brasil 1964 -2014” iniciativa da Fundação Pedro Calmon. Dois pontos devem ser ressaltados, o foco na historia recente, e a assunção do pensamento critico por um órgão publico como fundamental para construir o futuro. Mas é preciso passar do simples desagravo a estudos mais consistentes.

Quero aqui ampliar este debate com as transformações da nossa economia no mesmo período. Na década de 1950, quando a economia baiana patinava, Pinto de Aguiar convidou seus pares a decifrarem o que chamou de o enigma baiano. Como a Bahia tendo sido um dos maiores produtores de açúcar e fumo do mundo e pioneira da industrialização não conseguiu se capitalizar. Recorde-se Fabrica de Tecidos Todos os Santos (1844), em Valença, Cia. Fabril dos Fiais (1890), a Cia Empório Industrial, de Luis Tarquinio, e a União Fabril da Bahia, que fundiu cinco pequenas tecelagens (1891) e Fratelli Vita fabricante de refrigerantes (1902 , que foi a maior e mais conceituada fabricante de cristais do Brasil. Hoje são só ruínas.

No ciclo do cacau tivemos grandes produtores a exportadores, como Wildberguer, Barreto de Araujo, Correia Ribeiro e Chadler que quebraram muito antes da vassoura de bruxa. Correia Ribeiro, além do cacau, tinha um banco, uma construtora, lojas de materiais, postos de gasolina e supermercados. Tentando superar esse paradeiro, Oscar Cordeiro foi buscar petróleo em Lobato em 1937. A dois outros baianos, Landulfo Alves e Rómulo Almeida, este um dos fundadores da Petrobras e da CPE, se deve a implantação da Indústria petrolífera na Bahia em 1949 e seus dois filhotes, o Centro Industrial de Aratu e o Copec.

Com o ciclo da exploração do petróleo e atuação da Sudene, surgiram algumas industrias na Bahia de grande porte que acabaram quebrando ou sendo vendidas para o sul. Podemos citar a Usiba, hoje Gerdau; Sibra/ferro-ligas, agora Vale/Usiminas; Cimento Aratu hoje Votorantim, apenas moendo “clinquer”; Alimba, hoje Parmalat. Outras fecharam, como a Sambra de óleos vegetais; Opalma, maior fabricante de óleo de dendê; Elevadores Amoedo; Ceramus, fabrica de azulejos; Cesmel, estrutura de aço; Incabasa, carrocerias de ônibus; Ralf, de moveis; Poliflex, luminárias, etc.

No comercio firmas mais antigas se fecharam, como Florentino Silva, Buriti, Correia Ribeiro, Schindler e Adler, Duas Américas e Nova America. No setor de alimentos Eurico Magalhães, o rei do açúcar, Manuel Joaquim de Carvalho; Costa e Filhos, A. Vasques e Cia, José Martins e Cia, Raul Schuab e Cia, fundador da primeira rede de supermercados, e Mamede Paes Mendonça que chegou a ser o terceiro no ranking.

Perdemos tudo a partir dos anos 60. Este é o novo enigma baiano. Seria precipitado dizer que tudo se deve ao golpe. Outros fatores podem ter influído, como a inflação dos anos 70 e 80, os problemas de sucessão dentro da empresa etc. Mas a tônica de Delfin Neto de primeiro acumular para depois distribuir, o fechamento de agencias de desenvolvimento regional, como Sudene e Sudam, e de planejamento na Bahia, a CPE, e o exílio da elite intelectual que imaginava um projeto de nação com reformas de base e planejamento, com homens como Celso Furtado, Anísio Teixeira, Rômulo Almeida e Darcy Ribeiro, são na maior parte responsáveis por essa razia.

Na Bahia o autoritarismo perdurou por mais vinte anos, como uma disputa de um grupo emergente contra aqueles que lhe serviram de degraus pelo domínio político e econômico do estado. Assim deve ser vista a venda do Banco da Bahia, a quebra do Econômico, a disputa pelo espolio dos Diários Associados e sinal da Globo, o fechamento do Jornal da Bahia, a alienação do território municipal, a falência de empresas tradicionais de construção, como Comercio e Imóveis, Concic Portuaria, Comeba e Sisal e a formação de um novo cartel de grandes empreiteiras. Em suma, a concentração do poder econômico. Este é outro aspecto do golpe de 64 que precisa ser estudado.  

domingo, 16 de março de 2014

Legado da Copa e padrão FIFA

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA: A Tarde de 16/03/14


Durante muito tempo a propaganda oficial falava do legado da Copa. Este discurso mudou para obras padrão FIFA. Quanto ao legado, na quase totalidade das doze cidades onde serão realizados jogos, a Copa deixará apenas a reconstrução de estádios, que poderiam ser reformados por um terço do custo de novos, estes com menor capacidade que os antigos. É lamentável termos perdido a oportunidade de direcionar a cidade para outros rumos diminuindo sua congestão. Só Pernambuco soube fazer isto, porque tem planejamento.

Se para cada espectador da arena vierem mais dois acompanhantes teremos no máximo 150 mil pessoas, ou um quarto das que vêm anualmente ao carnaval da Bahia. Em Salvador nem metrô, nem VLT ou BRT, nem mesmo a renovação dos velhos hotéis. Os R$400 milhões de financiamento do BNDES para melhoria urbana foram repassados integralmente para a concessionária Fonte Nova Negócios e Participações (FNP). Recursos praticamente doados, pois com garantia do Governo Federal. Pela construção e gestão do estádio por quinze anos a FNP irá receber R$1,6 bilhões e mais 25.000 m² de terreno no centro da cidade para construção de shopping e escritórios.

Estádio Otávio Mangabeira, com duas grandes piscinas,
pistas de atletismo e um ginásio de esportes
Estadio com padrão de qualidade FIFA
Fotos: Google Earth
Afinal qual é o saldo desta Copa? Perdemos um complexo esportivo com duas grandes piscinas, pistas de atletismo e um ginásio de esportes. Perderam os times, em especial o Bahia, que terá que dividir a bilheteria e os direitos de transmissão com o novo dono do estádio. Perdeu a Bahia ao ter a homenagem a um dos seus maiores filhos, Otavio Mangabeira, transferida para uma cervejeira de Alagoinhas.

Imaginem o Maracanã ser reduzido à Arena Schin, ou o estádio Mané Garrincha ser transformado em Arena Pitu ou 51. Perdeu o torcedor que teve o seu estádio com a capacidade reduzida a quase a metade e os ingressos aumentados em proporção inversa. Perdeu também por não mais poder escolher o que beber e comer. A publicidade não é mais sugestiva ou subliminar é compulsória.

Quanto ao padrão de qualidade FIFA é preciso analisar a construção dos estádios. A quase totalidade deles foram projetados por arquitetos indicados pela FIFA com coberturas da RFR Stuttgart. Deixemos de parte os prazos e orçamentos estourados. O nosso, projetado pelo Arq. Marc Duwe, tem erros elementares, como a não articulação do estádio com o metrô vizinho e sua saída principal em escadaria despejando diretamente na pista de uma das vias mais velozes da cidade. Para alojar as bilheterias e portarias de entradas foi improvisado um colar de barraquinhas de lona em volta ao estádio. Embora bonito por fora, imitando o antigo, o acabamento de seu interior é do terceiro mundo.
Saída principal em escadaria despejando diretamente na pista e
barraquinhas de lona. Foto Henrique Azevedo
Este padrão estaria ligado à transparência. A pergunta é: para onde vão os direitos de transmissão de TV, bilheterias, patrocínios e merchandise que a FIFA arrecada sem investir um centavo? A FIFA não faz nada pelo futebol amador e pela educação esportiva. Ainda que por acaso, a sede da associação está na Suíça, onde as contas são sigilosas. Sobre a FIFA é preciso ler o livro de Andrew Jennings publicado na Inglaterra em 2006 cujo titulo em português seria “O mundo secreto da FIFA: subornos, manipulação de votações e escândalos de bilheterias”. Ao livro se seguiram outras denuncias apontadas no parlamento inglês e na BBC.

Uma delas é que três membros do conselho da FIFA, incluindo Ricardo Teixeira, teriam recebido suborno para escolherem o Qatar como sede da Copa de 2022, um país com a metade da população de Salvador, com temperaturas acima de 40ºC, e sem futebol.

João Havelange, presidente da FIFA durante 24 anos, teve que renunciar em 2013 a presidência de honra da FIFA para não ser julgado pelo seu conselho de ética e justiça da Suíça. Seu sucessor Joseph Blatter está no poder há 16 anos numa administração nebulosa. O genro de Havelange, Ricardo Teixeira, presidente da FBT durante 23 anos, teve que renunciar em 2012 três anos ante do prazo e ir morar no exterior diante de reiteradas denuncias de corrupção e sonegação fiscal. É este o legado ou o padrão FIFA?