sábado, 2 de agosto de 2014

Homenagem do CAU/BR aos Arquitetos Lelé e Miguel Pereira

Brasília, 10º Plenária Ampliada do CAU/BR, em 18 de julho de 2014.
Cons. Paulo Ormindo de Azevedo


Estamos aqui não para chorar a perda, senão para homenagear os colegas e amigos João da Gama Figueiras Lima, o Lelé, e Miguel Alves Pereira, ou simplesmente Miguel Pereira, e comemorar seus feitos. Comemorar significa lembrar, evocar e festejar e é para isto que estamos aqui reunidos. Duas vidas longas, plenas pessoal e profissionalmente, amados que foram por seus parentes, admirados por seus colegas e amigos e respeitados por seus concidadãos e desafetos. Ambos trabalharam com paixão até à véspera de seu “encantamento”, como diria Graciliano Ramos. Miguel Pereira repetindo Noel não queria choro nem vela, apenas uma fita amarela gravada com o nome dela: “Arquitetura”. Lelé no hospital que ajudou a criar compartindo sua dor com a de acidentados na cidade que ele tentou humanizar. Imagino a comissão de frente da confraria dos arquitetos do andar de cima, o pós-CAU/BR, se acotovelando para receber seus dois novos membros. 

Apesar de este ser um conselho profissional, não vou rever aqui seus acervos técnicos. Isto está no Siccau, nos livros e nos Currículos Lattes. Vou relembrar apenas seus carismas marcantes e trajetórias pessoais e tentar mostrar suas semelhanças e alteridades. Ambos nasceram em 1932, um no Rio de Janeiro o outro em Alegrete no extremo sul, más, coincidentemente, fizeram a mesma profissão e morreram neste mesmo ano de 2014. Ambos eram ateus e do mesmo partido, o PCB, não obstante uma alta espiritualidade, como se nota na igreja da Ascensão do Senhor de Lelé e no titulo do ultimo livro de Miguel, “Arquitetando a Esperança”.

Um era um carioca da gema, da Central do Brasil, musico e boêmio, embora a vida o tenha levado para Brasília e Salvador. O outro um gaucho quase portenho que foi exportado para a UnB em Brasília e depois de um doutorado na Inglaterra importado pela USP de São Paulo. Enquanto o primeiro batucava sambas no piano, violão e acordeom, o segundo tocava os vinis jazzísticos de Charlie Parker, Coleman Hawkin e John Coltrane. Um curtia a caipirinha, o outro era um enólogo refinado, ambos amantes do bom garfo, um da carne, o outro dos vegetais. Lelé afável e despreocupado com o traje, Miguel elegante no tratar e no vestir com seus slacks e coletes de talho.

Lelé começou a trabalhar nos canteiros de obras de Brasília levado por Nauro Esteves e Oscar Niemeyer de quem herdou a facilidade do traço. Miguel começa a trabalhar no escritório privado e a partir de 1961 como professor assistente da Faculdade de Arquitetura da UFRS. Desta, e em especial do Prof. Demetrio Ribeiro, herdou a eloquência do discurso político. Quantas vezes neste plenário acompanhamos suas falas inflamadas e irônicas, que parecia não ter fim? 

Curiosamente o golpe militar iria cruzar suas vidas. Lelé deixando a Faculdade de Arquitetura da UNB em 1965, conjuntamente com 200 professores e servidores, em protesto pelo arbítrio, para fazer o hospital de Taguatinga por oferta de Oscar Niemeyer. O outro trazido em 1968 pelos ex-alunos do curso de arquitetura daquela universidade para reabrir a faculdade. Miguel aqui ficou por oito anos como seu diretor. Lelé se especializou nos canteiros de pré-fabricação da União Soviética, da Tchecoslováquia e da Polônia com uma bolsa conseguida por Darcy Ribeiro, Miguel em Berkley, na Califirnia. A ditadura ceifaria a carreira de professor de Lelé e incentivaria, ironicamente, a de Miguel.

Aquele acontecimento faria com que Lelé se transferisse para Salvador, em 1973, aceitando convite do Secretario Estadual de Planejamento da Bahia, Mario Kertész, no governo de Antonio Carlos Magalhães, para ajudar a construir o Centro Administrativo da Bahia com obras como a igreja da Ascensão do Senhor e as sedes de secretarias de estado gingando como cobras as curvas de nível. Projeta e constrói ainda importantes equipamentos comunitários, como o Terminal de Ônibus da Lapa e a igreja dos Alagados (1979).

Com o sucesso da construção do Hospital de Taguatinga, Lelé é chamado de volta à Brasília para construir o Hospital do Aparelho Locomotor Sarah Kubitscheck, em 1980, quando faz amizade com seu diretor, o Dr. Aloysio Campos da Paz. Amizade que viabilizaria a criação de uma rede nacional hospitalar e mais tarde o Centro Tecnológico da Rede Sarah, CTRS, por ele dirigida. No ano seguinte, ele constrói o Sarah de Salvador, com inovador sistema de ventilação responsável por um dos mais baixos índices nacionais de infecção hospitalar.

Em 1984, aceitando o convite de um frei, constrói com escassos recursos econômicos e técnicos a Fabrica de Abadiana, para edificação de escolas e pontilhões. É ali que ele começa a desenvolver a tecnologia da pré-fabricação leve com argamassa armada. No segundo mandato do Prefeito Mario Kertesz, 1985-1989, cria a Fabrica de Equipamentos Comunitários de Salvador, FAEC, onde aperfeiçoa a tecnologia da argamassa armada aplicada a escolas, abrigos, bancos, escadas-drenantes, lixódutos e passarelas cobertas que seriam reproduzidas em todo o país. Monta em 15 dias o Palácio Tomé de Souza, do Executivo Municipal, no centro de Salvador e recupera com Lina Bardi casas antigas no Pelourinho.

Com a redemocratização, Lelé é levado por Darcy Ribeiro para o Rio de Janeiro do governador Leonel Brizola para fazer com Oscar Niemeyer os CIEPS. Na Fábrica de Escolas são produzidos componentes leves que podiam ser levados no ombro pelas escadarias para a construção de escolas-classes no auto dos morros, onde não chegavam os caminhões. As escolas-parques do sistema concebido por Anísio Teixeira, projetadas por Oscar Niemeyer, acabariam eclipsando as escolas-classes de Lelé, por sua maior visibilidade na parte baixa da cidade. 

Nos anos 90, ainda com a mediação de Darcy, realiza a rede nacional dos Centros Integrados de Ensino, ou CIACs, durante o governo Collor de Mello. Com o apoio do CTRS fundado em 1991 em Salvador constrói os Hospitais Sarah de Fortaleza (1991), Belo Horizonte (1993) e Lago Norte em Brasília (1995), sedes de Tribunais de Contas da União em oito estado, da Fundação Darcy Ribeiro em Brasília (1996) e o Tribunal Regional Eleitoral, em Salvador, em 1997, demonstrando uma enorme capacidade gerencial e empreendedora. Em todas estas obras painéis de Athos Bulcão, seu amigo.

Depois de ter oito de suas sedes construídas pelo CTRS, o Tribunal de Contas da União descobre que um centro tecnológico dependente de uma rede hospitalar não podia construir edifícios para outras instituições. Mesmo sem o CTRS, Lelé constrói ainda o Sarah do Rio de Janeiro. Diante desta nova situação, Lelé com ajuda de Haroldo Pinheiro, parceiro em muitas obras, se volta para um sonho da década de 1970, o Instituto Habitat, de produção industrial e formação de arquitetos em pré-fabricação. Mas a doença e a política já não o permite avançar muito. 

Lelé reconcilia em sua obra a milenar tradição dos arquitetos da antiguidade e medievais de conceber e construir, tornando-se um arquiconstrutor. Sua intensa atividade nas fabricas e nos canteiros de obras lhe impediu de escrever tudo que tinha a dizer. Mesmo assim a maioria dos livros sobre a sua obra resultaram de longas entrevistas e material gráfico elaborado por ele. Um dos seus poucos livros-solo, “Arquitetura: uma experiência na área de saúde” ganhou o premio Jaboti em 2013. 

Voltando a Miguel, depois da direção da Faculdade de Arquitetura da UnB, ele assume a coordenação da Comissão de Formação Profissional da UIA (1971-1977), a presidência nacional do IAB, entre 1972 e 76, e a coordenação do CEAU junto ao Ministério da Educação, de 1973 a 1977. Nos três anos seguintes iria fazer especializações na Rice University, do Texas, e University of Califórnia, retornando em 1980. Entre 1987 e 1993 ele se reveza entre o Brasil e a Inglaterra fazendo uma especialização na Architectural Association of London e doutoramento na University of Sheffield. Contemporaneamente volta à presidência nacional do IAB, entre 1989 e 1991. 

Durante a estadia na Inglaterra, Miguel é eleito Membro do Conselho Superior da UIA e no período 1999-2002 seu Vice-Presidente. Com o clima de abertura política retorna ao Brasil e é requisitado pela Faculdade de Arquitetura da USP em 1981 onde permanece até a morte como professor associado. Neste período, além de atividade profissional como arquiteto, organizou a primeira Bienal Internacional de Arquitetura e foi eleito membro do Conselho da Fundação Bienal de São Paulo. Miguel publicou oito livros, entre 1977 e 2014, sobre a arquitetura contemporânea brasileira, ensino de arquitetura e participação na UIA. Encerrou sua atuação gremial, entre 2012 e 2014, como conselheiro do CAU/BR que ajudou a criar. 

A atividade acadêmica e de representação profissional não deixou muito tempo para Miguel se dedicar à prancheta, contudo teve escritório próprio entre 1959 e 1970 no qual realizou projetos de varias residências que balizam sua evolução profissional. Mais importante foi a sua participação, entre 1962 e 1970, no grupo de trabalho para projeto da Refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas, RGS, um parque industrial de 140.000 m², em parceria com Carlos Fayet, Moacyr Marques e Claudio Araujo. Em 1970, projetou a Biblioteca Central da UnB em companhia dos colegas José Galbinski, Jodete Sócrates e Walmir Aguiar . 

Ganhou alguns concursos de arquitetura em parceria com outros colegas, como o do Museu Monumento a Pedro de Toledo, S. Paulo 1961, e do Instituto Concórdia em São Leopoldo, não construídos. Ganhou ainda os terceiros lugares nos concursos de projetos do Departamento Federal de Segurança Publica de Brasília, 1967, e da Sede da Petrobrás no Rio de Janeiro, em 1968 e o quarto lugar no concurso para a Biblioteca Central da Bahia (1968). Entre 1976 e 1977 foi chefe de projetos dos escritórios de Nestor Goulart Reis Fº e Joaquim Guedes. Em 1999 se associa a Gilberto Belleza e Maria Clara Batalha em escritório próprio onde permaneceu até a morte. 

A obra de Miguel Pereira segue uma linha modernista clássica em concreto armado com forte influencia de Mies van der Rohe e de Oswaldo Bratke. A de Lelé concilia a tradição barroca e oscariana com a industrial, com o uso de técnicas diversas, a começar pelo tijolo, como na igreja dos Alagados, passado pelo concreto e argamassa armada, o aço e os plásticos. Sua preocupação ecológica o leva a usar princípios da física, como a convecção e o efeito Venturi para proporcionar conforto ambiental sem uso da energia. Utiliza pioneiramente no mundo a mecatrônica para regular automaticamente brise-soleils e abrir e fechar claraboias, como no auditório do Sarah do Rio de Janeiro.

Ambos tiveram a mesma preocupação social. Miguel pretendia mudar a realidade social através da formação de agentes qualificados, arquitetos e urbanistas, na transformação do espaço urbano. Lelé buscava oferecer a administradores públicos e à comunidade soluções técnicas alternativas que pudessem facilitar as transformações urbanas e sociais ao criar uma pré-fabricação menos massificada, mais humanizada e bela.

Os dois tiveram sua obra reconhecida em vida. Lelé ganhou duas vezes o Premio Bienal Internacional de Arquitetura, em 1998 e 2002, titulo de doutor honoris causa da UFBa em 2003, Grande Premio Latino Americano na 9ª Bienal Internacional de Arquitetura, em 2001 e Medalha de Ouro da Federação Pan Americana de Associações de Arquitetos, FPAA, em 2012.

Miguel, por seu turno, foi membro honorário dos Colégios de Arquitetos do México e do Peru, da Sociedade Central de Arquitetos da Argentina, e da União de Arquitetos da Rússia. Recebeu as medalhas de Ouro do IAB e do Mérito do Confea, além do titulo de “Professor” da International Academy of Architecture of America. IAA. 

Quando colegas como Lelé e Miguel morrem podemos dizer o mesmo que Ernest Hemingway disse da morte do jovem Robert Jordan, das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola: “quando morre um homem morremos todos, pois somos parte do mesmo gênero humano. Por isso não pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

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