domingo, 16 de fevereiro de 2014

Transcon à moda baiana

Paulo Ormindo de Azevedo*
SSA, Atarde de 29/08/2010


A Transcon não era originalmente um prato baiano, mas entrou para o folclore político local com muito azeite e pimenta de cheiro. A Transferência do Direito de Construir (TDC) resultou de debates na Europa, durante a I Crise do Petróleo, visando dar sustentabilidade às cidades. A saída era o “solo criado”, fundamentado na separação entre o direito de propriedade e o de edificar.
Consolidou-se na lei italiana com a separação absoluta dos dois direitos e na legislação francesa, de 1975, que reconheceu que o proprietário tem o direito de construir uma área equivalente a de seu terreno. Além desse limite, chamado plafond légal de densité (teto legal de densidade), toda construção excedente ficava condicionada ao pagamento de um valor ao município para financiar infraestruturas e melhorias urbanas.
Essa doutrina deu origem à chamada “outorga onerosa”.
Nos EUA um instituto semelhante foi introduzido em Chicago, em 1973, o “Space Adrift” (espaço flutuante) visando a compensação de proprietários de edifícios tombados situados em zonas de maior gabarito. Esse instrumento se casava com o planejamento urbano, pois o município indicava áreas para receber esses créditos onde havia infraestrutura ociosaeinteressavadesenvolver.Surgiu assim a TDC, ou Transcon.
No Brasil, a primeira cidade a utilizar esse instrumento foi Curitiba, no início dos anos 80, adotandoummisto das duas doutrinas. O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, regulamentou a questão em âmbito nacional, através de dois artigos. O de nº 28, que trata da “outorga onerosa”, e o de nº 35, que trata do TDC. A Transcon, introduzida em Salvador através da Lei 3.885/87, confirmada pela Lei Orgânica do Município, de 1990, deveria servir para implantar infraestrutura, preservar o patrimônio, fazer a regularização fundiária de favelas e formar estoque de terra para o município.
Com o famigerado PDDU-2008, a prefeitura presenteou, na calada da noite, o setor imobiliário com milhões de metros quadrados de direitos de construir, aumentando os Coeficientes de Aproveitamentos Básicos (CAB) até 2,0, um crime de lesa-pátria equivalente à alienação dos terrenos municipais durante a ditadura. Como se não bastasse, estabeleceu Coeficientes de AproveitamentosMáximos (CAM), que chegam a 4,0, o que permitia duplicar a altura dos edifícios, através da compra de transcons. Na prática não se viu nenhuma melhoria da infraestrutura urbana e do patrimônio histórico, nem das favelas, como o Nordeste de Amaralina, de onde vem grande parte das transcons em giro.
A Transcon só serviu para hiperinflacionar o preço dos terrenos reais, verticalizar e congestionar a cidade com mais carros, saturar a infraestrutura de serviços, desmatar e impermeabilizar o solo provocando mais alagamentos.
Sem controle da sociedade, a Transcon foi apropriada por um cartel de especuladores que cobram o que querem pelo metro quadrado de direito de construir. Com a conivência da Sucom foi estendida, ilegalmente, às poucas áreas de outorga onerosa, cuja receita poderia trazer algum recurso à cidade. A guerra que está nos blogs e jornais é provocada pelo fogo amigo dos emergentes investidores no mercado de derivativos de ações da Salvador S/A, a que foi reduzida nossa cidade. Como a Transcon é virtual, a cidadania não percebe que está sendo lesada e que desse jeito Salvador dificilmente será viável financeiramente.
Agora que a receita vazou, nestes tempos bicudos de Wikileaks ,D.Iaiá,cozinheira de escola, ensina: “Transcon é prato forte, que deve ser cozido em fogo brando e mexido lentamente para não embolar nem pegar no fundo, colocando sempre água para render mais. Temperar com sal, pimenta e extrato de mexerica, a gosto. Deve ser servido morno em rega-bofes decontendoresemumgrandebarraco paralelo à orla marítima. Pode ser comido puro ou de preferência com escondidinho de fumeiro, regado com muita caninha, mas ingerido com moderação,porquecostumaprovocarrefluxos.
Como sobremesa, romeu e julieta de queijo manchego e marmelada”. Baixada a fumaça eleitoral, não se espantem se “tudo ficar como dantes no cartel de Abrantes”.
* Paulo Ormindo de Azevedo é Arquiteto, professor titular da Universidade Federal da Bahia

Um atraso de 40 anos no fisco municipal

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA, A Tarde de 16/02/14


Não são apenas 18 senão 40 anos de atraso do fisco municipal. Não porque o valor venal dos imóveis não tenha sido atualizado neste período, senão porque não se concebe mais que o IPTU possa bancar a manutenção da infra-estrutura e serviços de uma cidade moderna. A Crise do Petróleo de 1974 provocou, entre outros efeitos, um grande impacto na sustentabilidade das cidades. Ao contrario do que ocorreu no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos a questão foi discutida com a sociedade e equacionada adequadamente. O fundamento dessa nova política foi o reconhecimento que o município é quem promove a mais-valia do solo urbano e deve ser recompensado e que o direito à propriedade do solo não tem necessariamente a ver com o direito de construir. 

O equacionamento deste problema teve dois encaminhamentos. Na Europa optou-se pela figura do “solo criado”, ou venda pelo município do espaço aéreo, enquanto que nos Estados Unidos flexibilizou-se o direito de propriedade criando-se a figura da “transferência do direito de construir” –TDC. O “solo criado” consolidou-se na legislação italiana com a separação absoluta dos dois direitos, mas a lei francesa, de 1975, reconheceu que o proprietário tinha direito de construir uma área equivalente a de seu terreno. Além desse limite, toda construção excedente ficava condicionada ao pagamento de uma contribuição ao município para financiar infra-estruturas e melhorias urbanas. 

É com essa taxação sobre a indústria imobiliária que se financia na Europa a ampliação da infra-estrutura instalada e não com o IPTU, que grava principalmente a atividade residencial não produtiva. Até então a indústria imobiliária capitalizava em seu proveito a mais-valia produzida pelo investimento público. Com essa nova política fiscal o município passa a usufruir da mais-valia que ele próprio criou podendo assim realimentar o processo de urbanização. Esta doutrina deu origem no Brasil à figura da “outorga onerosa”.

Nos EE. UU. em 1973 foi introduzido em Chicago, um instrumento semelhante, mas brando, o “space adrift” (espaço flutuante) visando a aquisição pelo município de área verdes sem desembolso e compensação de proprietários de edifícios tombados situados em zonas de maior gabarito. Este era um instrumento de planejamento urbano, pois o município indicava áreas para receber esses créditos onde havia infra-estrutura ociosa e interessava desenvolver. Surgiu assim a TDC, ou na nomenclatura jurídica baiana “transcon”. 

O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, regulamentou a questão em âmbito nacional através dos artigos No 28, que trata da “outorga onerosa”, e o No 35, que trata do TDC. A transcon, introduzida em Salvador através da Lei 3885/87, confirmada pela Lei Orgânica do Município de 1990, deveria servir para criar praças e parques, formar estoque de terras e preservar o patrimônio. “Transcon à moda baiana” (A Tarde 29/8/10) só serviu para hiper-inflacionar o preço dos terrenos, congestionar a cidade com mais carros, saturar a infra-estrutura e desmatar em transações nebulosas.

Com o PDDU-2008, a Prefeitura doou à especulação imobiliária milhões de metros quadrados de direitos de construir aumentando os Coeficientes de Aproveitamento Básico – CAB para 2 e de Aproveitamento Máximo – CAM para 4, o que permite duplicar a altura dos edifícios, através da compra de transcons. Precisamos acabar com essa farra de compensações milionárias de supostas invasões que em muitos casos são apenas loteamentos clandestinos ou consentidos, para transformar débitos de IPTU em créditos de transcon. 

Com a judicialização do novo IPTU, que rompe com o principio da razoabilidade e não considera a função social de imóveis não residenciais, o prefeito tem a oportunidade de fazer a coisa certa na modulação do PDDU e LOUS, aumentando as áreas de outorga onerosa, reduzindo os valores do CAB e do CAM, fazendo operações urbanas consorciadas e taxando garagens e “varandas gourmet” que são fechadas logo que o edifício é entregue. Há formas mais inovadoras de financiar a cidade sem onerar surrealisticamente o IPTU. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A intelligentsia baiana em crise

Paulo Ormindo de Azevedo
SSA, A Tarde, 02/02/14"


O termo designava a elite intelectual russa do século XIX, mas tem sido aplicado a outros contextos. A Bahia sempre teve uma intelligentsia política. Trataremos especificamente das seis primeiras décadas do século passado. Ela era formada por intelectuais conservadores e de centro esquerda cooptados pela política no período de Vargas e no breve hiato democrático pós-Vargas. Independente de suas orientações ideológicas eram grupos indiscutivelmente competentes e engajados na ação política. Muitos deles chegaram a ministros de estado e se destacaram como intelectuais no plano nacional.

Podemos citar lideranças como J.J. Seabra, Otavio Mangabeira, Luiz Viana Filho e candidatos como Rui Barbosa e Pedro Calmon, ainda que derrotados nas urnas. Em um segundo escalão, podemos nomear, entre outros, os educadores Álvaro Augusto da Silva, idealizador do ICEA, Isaias Alves fundador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Anísio Teixeira construtor da Escola Parque e da rede de escalas interioranas e Edgar Santos fundador da UFBA, que pôs a Bahia na vanguarda das artes nacionais. Possuíamos produtores culturais como Alexandrina Ramalho da SCAB, Adroaldo Ribeiro Costa da Hora da Criança, Pinto de Aguiar da Editora Progresso, Lina Bardi do Museu do Unhão, Glauber Rocha, Roberto Pires e Walter da Silveira criadores do cinema baiano e João Augusto do Teatro dos Novos. 

Planejadores como Tosta Filho, que recuperou a região cacaueira depois do craque de 1929, Mario Leal Ferreira e Diógenes Rebouças, criadores do EPUCS, Nestor Duarte que instalou colônias agrícolas de japoneses e italianos no interior e Rômulo Almeida secretario de estado, que criou a CPE e foi o idealizador do Centro Industrial de Aratu e do COPEC. Discutindo o contraditório o jornalismo combativo de Wilson Lins no Imparcial, Ernesto Simões Filho e Jorge Calmon em A Tarde, Odorico Tavares nos Diários Associados, João Falcão e João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, no Jornal da Bahia. 

No setor privado empresários que projetaram companhias locais no plano nacional como os banqueiros Francisco Sá, Clemente Mariani e Fernando Góes dos bancos Econômico e da Bahia, construtores como Norberto Odebrecht, Chico Valadares e Otto Schep que transformaram uma construtora falida em um nome nacional e Mamede Paes Mendonça do Bom Preço.

Hoje o cenário da Bahia e de conformismo e passividade, nenhum político de projeção nacional, nenhum planejamento, nem uma oposição que cumpra o seu papel. Não temos mais bancos, grandes empresas com sede na Bahia, nem movimento cultural. Salvador, outrora comparada a Toledo na Espanha, foi destruída pela especulação imobiliária e por obras públicas contestáveis e de péssima qualidade. 

A crise de desenvolvimento do estado deriva da morte desta intelligentsia. Contestarão dizendo que o momento é outro e a crise baiana decorre da internacionalização da economia e da conjuntura regional. Não é verdade, Pernambuco e Ceará estão passando a Bahia com seus portos e serviços modernos, movimentos culturais e turismo diferenciado. 

A que se deve isto? Sem dúvida à repressão da ditadura, que na Bahia, além do caráter ideológico teve um viés personalista e de disputa hegemônica do poder econômico e social. Não apenas jovens de esquerda foram perseguidos, presos e torturados, mas intelectuais, artistas e empresários, que quando não foram presos tiveram de se exilar em outros estados e no exterior. Que o digam Emiliano José, Rui Patterson, Juca Ferreira, Joca, Joaci Góes, Luis Henrique Dias Tavares, Juarez Paraíso, Lina Bardi, Caetano e Gil, e os grupos econômicos Mariani e Paes Mendonça. O autoritarismo na Bahia não acabou em 1985. Se já não se “prende e arrebenta”, não se discute, nem compartilha as decisões. 

Em defesa da democracia precisamos constituir uma oposição que defenda alternativas, reconstruir a universidade publica como um centro de pensamento crítico e inovador, recriar núcleos de planejamento público e acabar com a submissão a um poder econômico míope, que aproveita o vácuo do estado, para oferecer projetos oportunistas sem futuro.