Brasília, 10º Plenária Ampliada do CAU/BR, em 18 de julho de 2014.
Cons. Paulo Ormindo de Azevedo
Estamos aqui não para chorar a perda, senão para homenagear os colegas e
amigos João da Gama Figueiras Lima, o Lelé, e Miguel Alves Pereira, ou
simplesmente Miguel Pereira, e comemorar seus feitos. Comemorar
significa lembrar, evocar e festejar e é para isto que estamos aqui
reunidos. Duas vidas longas, plenas pessoal e profissionalmente, amados
que foram por seus parentes, admirados por seus colegas e amigos e
respeitados por seus concidadãos e desafetos. Ambos trabalharam com
paixão até à véspera de seu “encantamento”, como diria Graciliano Ramos.
Miguel Pereira repetindo Noel não queria choro nem vela, apenas uma
fita amarela gravada com o nome dela: “Arquitetura”. Lelé no hospital
que ajudou a criar compartindo sua dor com a de acidentados na cidade
que ele tentou humanizar. Imagino a comissão de frente da confraria dos
arquitetos do andar de cima, o pós-CAU/BR, se acotovelando para receber
seus dois novos membros.
Apesar de este ser um conselho
profissional, não vou rever aqui seus acervos técnicos. Isto está no
Siccau, nos livros e nos Currículos Lattes. Vou relembrar apenas seus
carismas marcantes e trajetórias pessoais e tentar mostrar suas
semelhanças e alteridades. Ambos nasceram em 1932, um no Rio de Janeiro o
outro em Alegrete no extremo sul, más, coincidentemente, fizeram a
mesma profissão e morreram neste mesmo ano de 2014. Ambos eram ateus e
do mesmo partido, o PCB, não obstante uma alta espiritualidade, como se
nota na igreja da Ascensão do Senhor de Lelé e no titulo do ultimo livro
de Miguel, “Arquitetando a Esperança”.
Um era um carioca da gema,
da Central do Brasil, musico e boêmio, embora a vida o tenha levado para
Brasília e Salvador. O outro um gaucho quase portenho que foi exportado
para a UnB em Brasília e depois de um doutorado na Inglaterra importado
pela USP de São Paulo. Enquanto o primeiro batucava sambas no piano,
violão e acordeom, o segundo tocava os vinis jazzísticos de Charlie
Parker, Coleman Hawkin e John Coltrane. Um curtia a caipirinha, o outro
era um enólogo refinado, ambos amantes do bom garfo, um da carne, o
outro dos vegetais. Lelé afável e despreocupado com o traje, Miguel
elegante no tratar e no vestir com seus slacks e coletes de talho.
Lelé começou a trabalhar nos canteiros de obras de Brasília levado por
Nauro Esteves e Oscar Niemeyer de quem herdou a facilidade do traço.
Miguel começa a trabalhar no escritório privado e a partir de 1961 como
professor assistente da Faculdade de Arquitetura da UFRS. Desta, e em
especial do Prof. Demetrio Ribeiro, herdou a eloquência do discurso
político. Quantas vezes neste plenário acompanhamos suas falas
inflamadas e irônicas, que parecia não ter fim?
Curiosamente o
golpe militar iria cruzar suas vidas. Lelé deixando a Faculdade de
Arquitetura da UNB em 1965, conjuntamente com 200 professores e
servidores, em protesto pelo arbítrio, para fazer o hospital de
Taguatinga por oferta de Oscar Niemeyer. O outro trazido em 1968 pelos
ex-alunos do curso de arquitetura daquela universidade para reabrir a
faculdade. Miguel aqui ficou por oito anos como seu diretor. Lelé se
especializou nos canteiros de pré-fabricação da União Soviética, da
Tchecoslováquia e da Polônia com uma bolsa conseguida por Darcy Ribeiro,
Miguel em Berkley, na Califirnia. A ditadura ceifaria a carreira de
professor de Lelé e incentivaria, ironicamente, a de Miguel.
Aquele
acontecimento faria com que Lelé se transferisse para Salvador, em 1973,
aceitando convite do Secretario Estadual de Planejamento da Bahia,
Mario Kertész, no governo de Antonio Carlos Magalhães, para ajudar a
construir o Centro Administrativo da Bahia com obras como a igreja da
Ascensão do Senhor e as sedes de secretarias de estado gingando como
cobras as curvas de nível. Projeta e constrói ainda importantes
equipamentos comunitários, como o Terminal de Ônibus da Lapa e a igreja
dos Alagados (1979).
Com o sucesso da construção do Hospital de
Taguatinga, Lelé é chamado de volta à Brasília para construir o Hospital
do Aparelho Locomotor Sarah Kubitscheck, em 1980, quando faz amizade
com seu diretor, o Dr. Aloysio Campos da Paz. Amizade que viabilizaria a
criação de uma rede nacional hospitalar e mais tarde o Centro
Tecnológico da Rede Sarah, CTRS, por ele dirigida. No ano seguinte, ele
constrói o Sarah de Salvador, com inovador sistema de ventilação
responsável por um dos mais baixos índices nacionais de infecção
hospitalar.
Em 1984, aceitando o convite de um frei, constrói com
escassos recursos econômicos e técnicos a Fabrica de Abadiana, para
edificação de escolas e pontilhões. É ali que ele começa a desenvolver a
tecnologia da pré-fabricação leve com argamassa armada. No segundo
mandato do Prefeito Mario Kertesz, 1985-1989, cria a Fabrica de
Equipamentos Comunitários de Salvador, FAEC, onde aperfeiçoa a
tecnologia da argamassa armada aplicada a escolas, abrigos, bancos,
escadas-drenantes, lixódutos e passarelas cobertas que seriam
reproduzidas em todo o país. Monta em 15 dias o Palácio Tomé de Souza,
do Executivo Municipal, no centro de Salvador e recupera com Lina Bardi
casas antigas no Pelourinho.
Com a redemocratização, Lelé é levado
por Darcy Ribeiro para o Rio de Janeiro do governador Leonel Brizola
para fazer com Oscar Niemeyer os CIEPS. Na Fábrica de Escolas são
produzidos componentes leves que podiam ser levados no ombro pelas
escadarias para a construção de escolas-classes no auto dos morros, onde
não chegavam os caminhões. As escolas-parques do sistema concebido por
Anísio Teixeira, projetadas por Oscar Niemeyer, acabariam eclipsando as
escolas-classes de Lelé, por sua maior visibilidade na parte baixa da
cidade.
Nos anos 90, ainda com a mediação de Darcy, realiza a rede
nacional dos Centros Integrados de Ensino, ou CIACs, durante o governo
Collor de Mello. Com o apoio do CTRS fundado em 1991 em Salvador
constrói os Hospitais Sarah de Fortaleza (1991), Belo Horizonte (1993) e
Lago Norte em Brasília (1995), sedes de Tribunais de Contas da União em
oito estado, da Fundação Darcy Ribeiro em Brasília (1996) e o Tribunal
Regional Eleitoral, em Salvador, em 1997, demonstrando uma enorme
capacidade gerencial e empreendedora. Em todas estas obras painéis de
Athos Bulcão, seu amigo.
Depois de ter oito de suas sedes
construídas pelo CTRS, o Tribunal de Contas da União descobre que um
centro tecnológico dependente de uma rede hospitalar não podia construir
edifícios para outras instituições. Mesmo sem o CTRS, Lelé constrói
ainda o Sarah do Rio de Janeiro. Diante desta nova situação, Lelé com
ajuda de Haroldo Pinheiro, parceiro em muitas obras, se volta para um
sonho da década de 1970, o Instituto Habitat, de produção industrial e
formação de arquitetos em pré-fabricação. Mas a doença e a política já
não o permite avançar muito.
Lelé reconcilia em sua obra a milenar
tradição dos arquitetos da antiguidade e medievais de conceber e
construir, tornando-se um arquiconstrutor. Sua intensa atividade nas
fabricas e nos canteiros de obras lhe impediu de escrever tudo que tinha
a dizer. Mesmo assim a maioria dos livros sobre a sua obra resultaram
de longas entrevistas e material gráfico elaborado por ele. Um dos seus
poucos livros-solo, “Arquitetura: uma experiência na área de saúde”
ganhou o premio Jaboti em 2013.
Voltando a Miguel, depois da
direção da Faculdade de Arquitetura da UnB, ele assume a coordenação da
Comissão de Formação Profissional da UIA (1971-1977), a presidência
nacional do IAB, entre 1972 e 76, e a coordenação do CEAU junto ao
Ministério da Educação, de 1973 a 1977. Nos três anos seguintes iria
fazer especializações na Rice University, do Texas, e University of
Califórnia, retornando em 1980. Entre 1987 e 1993 ele se reveza entre o
Brasil e a Inglaterra fazendo uma especialização na Architectural
Association of London e doutoramento na University of Sheffield.
Contemporaneamente volta à presidência nacional do IAB, entre 1989 e
1991.
Durante a estadia na Inglaterra, Miguel é eleito Membro do
Conselho Superior da UIA e no período 1999-2002 seu Vice-Presidente. Com
o clima de abertura política retorna ao Brasil e é requisitado pela
Faculdade de Arquitetura da USP em 1981 onde permanece até a morte como
professor associado. Neste período, além de atividade profissional como
arquiteto, organizou a primeira Bienal Internacional de Arquitetura e
foi eleito membro do Conselho da Fundação Bienal de São Paulo. Miguel
publicou oito livros, entre 1977 e 2014, sobre a arquitetura
contemporânea brasileira, ensino de arquitetura e participação na UIA.
Encerrou sua atuação gremial, entre 2012 e 2014, como conselheiro do
CAU/BR que ajudou a criar.
A atividade acadêmica e de representação
profissional não deixou muito tempo para Miguel se dedicar à prancheta,
contudo teve escritório próprio entre 1959 e 1970 no qual realizou
projetos de varias residências que balizam sua evolução profissional.
Mais importante foi a sua participação, entre 1962 e 1970, no grupo de
trabalho para projeto da Refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas, RGS,
um parque industrial de 140.000 m², em parceria com Carlos Fayet, Moacyr
Marques e Claudio Araujo. Em 1970, projetou a Biblioteca Central da UnB
em companhia dos colegas José Galbinski, Jodete Sócrates e Walmir
Aguiar .
Ganhou alguns concursos de arquitetura em parceria com
outros colegas, como o do Museu Monumento a Pedro de Toledo, S. Paulo
1961, e do Instituto Concórdia em São Leopoldo, não construídos. Ganhou
ainda os terceiros lugares nos concursos de projetos do Departamento
Federal de Segurança Publica de Brasília, 1967, e da Sede da Petrobrás
no Rio de Janeiro, em 1968 e o quarto lugar no concurso para a
Biblioteca Central da Bahia (1968). Entre 1976 e 1977 foi chefe de
projetos dos escritórios de Nestor Goulart Reis Fº e Joaquim Guedes. Em
1999 se associa a Gilberto Belleza e Maria Clara Batalha em escritório
próprio onde permaneceu até a morte.
A obra de Miguel Pereira segue
uma linha modernista clássica em concreto armado com forte influencia
de Mies van der Rohe e de Oswaldo Bratke. A de Lelé concilia a tradição
barroca e oscariana com a industrial, com o uso de técnicas diversas, a
começar pelo tijolo, como na igreja dos Alagados, passado pelo concreto e
argamassa armada, o aço e os plásticos. Sua preocupação ecológica o
leva a usar princípios da física, como a convecção e o efeito Venturi
para proporcionar conforto ambiental sem uso da energia. Utiliza
pioneiramente no mundo a mecatrônica para regular automaticamente
brise-soleils e abrir e fechar claraboias, como no auditório do Sarah do
Rio de Janeiro.
Ambos tiveram a mesma preocupação social. Miguel
pretendia mudar a realidade social através da formação de agentes
qualificados, arquitetos e urbanistas, na transformação do espaço
urbano. Lelé buscava oferecer a administradores públicos e à comunidade
soluções técnicas alternativas que pudessem facilitar as transformações
urbanas e sociais ao criar uma pré-fabricação menos massificada, mais
humanizada e bela.
Os dois tiveram sua obra reconhecida em vida.
Lelé ganhou duas vezes o Premio Bienal Internacional de Arquitetura, em
1998 e 2002, titulo de doutor honoris causa da UFBa em 2003, Grande
Premio Latino Americano na 9ª Bienal Internacional de Arquitetura, em
2001 e Medalha de Ouro da Federação Pan Americana de Associações de
Arquitetos, FPAA, em 2012.
Miguel, por seu turno, foi membro
honorário dos Colégios de Arquitetos do México e do Peru, da Sociedade
Central de Arquitetos da Argentina, e da União de Arquitetos da Rússia.
Recebeu as medalhas de Ouro do IAB e do Mérito do Confea, além do titulo
de “Professor” da International Academy of Architecture of America.
IAA.
Quando colegas como Lelé e Miguel morrem podemos dizer o mesmo
que Ernest Hemingway disse da morte do jovem Robert Jordan, das
Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola: “quando morre um
homem morremos todos, pois somos parte do mesmo gênero humano. Por isso
não pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.