O FUTEBOL COMO OBJETO DE ESTUDO

THALES DE AZEVEDO                                                                                                                         
 Jornal A Tarde, quinta-feira, 02/08/1973

 

O jogo-do-bicho, o carnaval e o futebol eram considerados, até bem pouco tempo, as coisas mais sérias no Brasil, aquelas que caracterizavam os gostos dos brasileiros e as que este levava mais a peito e mais sisudamente, se é possível ser sisudo em matéria de jogo e de divertimentos. Não há dúvida que eram preocupações e interesses de muita significação para o nosso povo. Não sei de análises científicas, psicológicas e sociológicas do jogo-do-bicho, instituição que interessava por assim dizer à fatalidade da população, particularmente aos pobres, ávidos de suprir pela sorte e pelo azar a precariedade de sua condição. Desapareceu ou escondeu-se muito bem essa democrática lotera, que freqüentemente beneficiava a grande número de pessoas com seus modestos prêmios pagos com pontualidade e seriedade por parte dos perseguidos bicheiros. Agora impera a Loteria Esportiva com a sedução dos seus prêmios milionários, reservados a um ou poucos mais ganhadores que se vêem obrigado a fugir dos assaltantes, dos seqüestradores e das proponentes de investimentos... Do carnaval, sabemos que tem uma função lúdica, de catarse e de liberação de recalques e ressentimentos de crítica às instituições, de compensação das frustrações da vida quotidiana, ao mesmo tempo que de convívio solidário das classes. São estas as conclusões que esboçou a folclorista Catarina Kate, com base em estudos feitos em Pernambuco, e que, com maior rigor metodológico, elaborou o etnólogo Roberto da Mata, de uma perspectiva estruturalista, em ensaio recentemente publicado.

O futebol começa por sua vez, a ter uma sociologia própria, de algum modo estimulada e iniciada pelo mestre Gilberto Freire e empreendida por outras. É tal a riqueza de aspectos do futebol que o comPlexo formado em torno do mesmo, sobretudo pelos meios de comunicação, me parece digno da atenção dos cientistas sociais de vários campos. De esporte de uns poucos, geralmente de classe alta e dos que o foram aprender na Inglaterra, passou o futebol a divertimento e exercício de amadores. Em poucos decênios tornou-se de interesse para multidões crescentes, tornando-se atividade profissional rendosa para os jogadores de fama, mais populares, e objeto de grandes transações de cunho comercial entre os clubes, as federações, as diversas organizações regionais, nacionais e internacionais que promovem e apóiam os torneios e campeonatos. O “esporte das multidões” absorveu, praticamente, todas as demais modalidades de divertimentos organizados, no Brasil, de tal maneira que mobiliza as massas a no exalta e hipnotiza, que movimenta quantias fabulosas, em rendas das partidas, em despesas de manutenção dos clubes, em salários de treinadores, técnicos e jogadores, em publicidade e divulgação dos jogos, que investe capitais vultosos em estádios que serão mostrados no futuro, como o Coliseu e as arenas romanas, como as catedrais medievais, como os solares e as Igrejas barrocas... O Estado por sua vez, foi levado a tomar conhecimento e a assumir obrigações na regulamentação, no financiamento, na promoção do esporte, legislando especialmente a respeito, organizando tribunais que se ocupam principalmente desse esporte, e até capitalizando politicamente os êxitos desse tipo de atividade.

Uma das funções que parecem mais merecedoras de atenção, no particular, é a educativa. Não sei se já se chamou atenção para o que deve representar hoje o futebol, em nosso País, como instrumento de educação popular. Explico-me: o futebol era, a princípio um divertimento, um passatempo, um exercício apenas pare os seus praticantes. Pequenos grupos de curiosos reuniam-se em torno dos “campos” para apreciar a movimentação ágil e estranha dos “players”. Com a naturalização e a institucionalização, que rapidamente alcançou, o futebol logo adquiriu um caráter eminentemente técnico, como prática e organização e como objeto de observação e análise por parte dos “torcedores” que se multiplicaram às dezenas ou centenas de milhares em cada estádio e aos milhões diante dor rádios e das televisões. É desse ponto de vista que passou a exercer um papel peculiar para a mentalidade do povo em geral. Os meios de comunicação - o radio, a televisão, o cinema e também as publicações periódicas especializadas e as páginas dos mais sisudos jornais - atribuíram às partidas uma surpreendente nova dimensão, a de verdadeiros exercícios de raciocínio crítico, tanto pelo modo como o público hoje as aprecia e avalia quanto pelo comentário sobre as tecnicalidades das partidas, as técnicas e estratégias desenvolvidas pelos treinadores, as hierarquias profissionais e sociais nas equipes, as combinações de jogadores no campo, as características de cada membro dos times, que especialistas conhecidos transmitem aos torcedores durante as partidas e ao cabo das mesmas. Essa sucessão de análises e comentários, quando feitos com a competência, o equilíbrio e a elegância de linguagem e de atitudes de um Rui Porto e versam sobre o estilo de jogo de um Pelé, com sua personalidade por muitos títulos merecedora da popularidade que o cerca, constituem, por sua vez, lições e estímulos ao pensamento ordenado e arguto. Admito até que as discussões miúdas e por vezes subalternas de alguns cronistas municipais, sobre as intrigas nos bastidores dos clubes, sobre o comércio dos passes, em que os jogadores são manipulados como mercadoria e como escravos, sobre o disse-não-disse da organização de selecionados e da programação de campeonato e outros torneios - também essa literatura tem sua função intelectual ainda quando careça de objetivos morais. Quando muito vale para a fiscalização do “esporte bretão” pelo grande público que se apaixona e exalta no estádio ou nas rodas de conversa.
Se é verdade que a nossa sociologia tem um mundo de temas a explorar. Inclusive temas quotidianos, de inimaginável relevância para a vida do nosso povo, é também certo que nada perderia antes poderia prestar insuspeitados serviços empreendendo pesquisas sérias e bem programadas, sobretudo competentes, sobre esse fascinante tema do futebol como instituto educador do povo além de passatempo e diversão. Tão complexo é o futebol, examinado sob vários ângulos, que justificaria estudos igualmente variados em abordagem e em objeto, não apenas de sociólogo - dado que Sociologia é aqui um termo genérico pare designar a maior parte das ciências sociais - mas de antropologistas, economistas, psicólogos e, como agora sugiro, peritos em educação e didática e em comunicações.


E melhor que isso, por grupos interdisciplinares em colaboração inteligentemente planejada. Aliás, um dos grandes dessa arte, que é João Saldanha, já tem uma “sociologia do futebol” que bem poderia ser subsídio valioso para o cientistas sociais,

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