THALES DE AZEVEDO

O jogo-do-bicho, o carnaval e o
futebol eram considerados, até bem pouco tempo, as coisas mais sérias no
Brasil, aquelas que caracterizavam os gostos dos brasileiros e as que este
levava mais a peito e mais sisudamente, se é possível ser sisudo em matéria de
jogo e de divertimentos. Não há dúvida que eram preocupações e interesses de
muita significação para o nosso povo. Não sei de análises científicas,
psicológicas e sociológicas do jogo-do-bicho, instituição que interessava por
assim dizer à fatalidade da população, particularmente aos pobres, ávidos de suprir
pela sorte e pelo azar a precariedade de sua condição. Desapareceu ou escondeu-se
muito bem essa democrática lotera, que freqüentemente beneficiava a grande
número de pessoas com seus modestos prêmios pagos com pontualidade e seriedade
por parte dos perseguidos bicheiros. Agora impera a Loteria Esportiva com a
sedução dos seus prêmios milionários, reservados a um ou poucos mais ganhadores
que se vêem obrigado a fugir dos assaltantes, dos seqüestradores e das
proponentes de investimentos... Do carnaval, sabemos que tem uma função lúdica,
de catarse e de liberação de recalques e ressentimentos de crítica às instituições,
de compensação das frustrações da vida quotidiana, ao mesmo tempo que de
convívio solidário das classes. São estas as conclusões que esboçou a folclorista
Catarina Kate, com base em estudos feitos em Pernambuco, e que, com maior rigor
metodológico, elaborou o etnólogo Roberto da Mata, de uma perspectiva
estruturalista, em ensaio recentemente publicado.
O futebol começa por sua vez, a
ter uma sociologia própria, de algum modo estimulada e iniciada pelo mestre
Gilberto Freire e empreendida por outras. É tal a riqueza de aspectos do
futebol que o comPlexo formado em torno do mesmo, sobretudo pelos meios de
comunicação, me parece digno da atenção dos cientistas sociais de vários
campos. De esporte de uns poucos, geralmente de classe alta e dos que o foram
aprender na Inglaterra, passou o futebol a divertimento e exercício de
amadores. Em poucos decênios tornou-se de interesse para multidões crescentes,
tornando-se atividade profissional rendosa para os jogadores de fama, mais populares,
e objeto de grandes transações de cunho comercial entre os clubes, as
federações, as diversas organizações regionais, nacionais e internacionais que promovem
e apóiam os torneios e campeonatos. O “esporte das multidões” absorveu,
praticamente, todas as demais modalidades de divertimentos organizados, no Brasil,
de tal maneira que mobiliza as massas a no exalta e hipnotiza, que movimenta
quantias fabulosas, em rendas das partidas, em despesas de manutenção dos
clubes, em salários de treinadores, técnicos e jogadores, em publicidade e
divulgação dos jogos, que investe capitais vultosos em estádios que serão
mostrados no futuro, como o Coliseu e as arenas romanas, como as catedrais
medievais, como os solares e as Igrejas barrocas... O Estado por sua vez, foi levado
a tomar conhecimento e a assumir obrigações na regulamentação, no
financiamento, na promoção do esporte, legislando especialmente a respeito,
organizando tribunais que se ocupam principalmente desse esporte, e até
capitalizando politicamente os êxitos desse tipo de atividade.
Uma das funções que parecem mais
merecedoras de atenção, no particular, é a educativa. Não sei se já se chamou
atenção para o que deve representar hoje o futebol, em nosso País, como
instrumento de educação popular. Explico-me: o futebol era, a princípio um
divertimento, um passatempo, um exercício apenas pare os seus praticantes.
Pequenos grupos de curiosos reuniam-se em torno dos “campos” para apreciar a
movimentação ágil e estranha dos “players”. Com a naturalização e a institucionalização,
que rapidamente alcançou, o futebol logo adquiriu um caráter eminentemente
técnico, como prática e organização e como objeto de observação e análise por
parte dos “torcedores” que se multiplicaram às dezenas ou centenas de milhares
em cada estádio e aos milhões diante dor rádios e das televisões. É desse ponto
de vista que passou a exercer um papel peculiar para a mentalidade do povo em
geral. Os meios de comunicação - o radio, a televisão, o cinema e também as
publicações periódicas especializadas e as páginas dos mais sisudos jornais -
atribuíram às partidas uma surpreendente nova dimensão, a de verdadeiros
exercícios de raciocínio crítico, tanto pelo modo como o público hoje as aprecia
e avalia quanto pelo comentário sobre as tecnicalidades das partidas, as
técnicas e estratégias desenvolvidas pelos treinadores, as hierarquias
profissionais e sociais nas equipes, as combinações de jogadores no campo, as
características de cada membro dos times, que especialistas conhecidos
transmitem aos torcedores durante as partidas e ao cabo das mesmas. Essa
sucessão de análises e comentários, quando feitos com a competência, o
equilíbrio e a elegância de linguagem e de atitudes de um Rui Porto e versam
sobre o estilo de jogo de um Pelé, com sua personalidade por muitos títulos
merecedora da popularidade que o cerca, constituem, por sua vez, lições e
estímulos ao pensamento ordenado e arguto. Admito até que as discussões miúdas
e por vezes subalternas de alguns cronistas municipais, sobre as intrigas nos
bastidores dos clubes, sobre o comércio dos passes, em que os jogadores são
manipulados como mercadoria e como escravos, sobre o disse-não-disse da
organização de selecionados e da programação de campeonato e outros torneios -
também essa literatura tem sua função intelectual ainda quando careça de
objetivos morais. Quando muito vale para a fiscalização do “esporte bretão”
pelo grande público que se apaixona e exalta no estádio ou nas rodas de
conversa.
Se é verdade que a nossa
sociologia tem um mundo de temas a explorar. Inclusive temas quotidianos, de
inimaginável relevância para a vida do nosso povo, é também certo que nada
perderia antes poderia prestar insuspeitados serviços empreendendo pesquisas
sérias e bem programadas, sobretudo competentes, sobre esse fascinante tema do
futebol como instituto educador do povo além de passatempo e diversão. Tão
complexo é o futebol, examinado sob vários ângulos, que justificaria estudos
igualmente variados em abordagem e em objeto, não apenas de sociólogo - dado
que Sociologia é aqui um termo genérico pare designar a maior parte das ciências
sociais - mas de antropologistas, economistas, psicólogos e, como agora sugiro,
peritos em educação e didática e em comunicações.
E melhor que isso, por grupos interdisciplinares
em colaboração inteligentemente planejada. Aliás, um dos grandes dessa arte,
que é João Saldanha, já tem uma “sociologia do futebol” que bem poderia ser
subsídio valioso para o cientistas sociais,
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